PRISIONEIROS
E CARCEREIROS
Nelson Mandela é o exemplo mais
conhecido de como é possível ver um carcereiro ser chamado à tomada de posse de
um presidente que foi seu prisioneiro. Prisioneiro e carcereiro têm de perceber
que estão em posições diferentes, antagónicas, mas não são necessariamente
inimigos. Podem cumprimentar-se com respeito e, quiçá, até com alguma simpatia.
Havia
numa prisão dois carcereiros: um, a que chamaremos o carcereiro mau, era, como
o nome sugere, violento para os prisioneiros, sujeitando-os às maiores
sevícias, ultrapassando tudo o que a lei e os superiores lhe exigiam, entrando
no domínio da perversão de gostar de ver o prisioneiro sofrer; o outro, o
carcereiro bom, era diligente no cumprimento das suas funções, mas sempre que
podia evitava infligir mais dor na pena que o prisioneiro já era obrigado a
sofrer e, não raro, associava-se à sua dor e procurava amenizá-la.
Em
determinada altura o diretor da prisão, por razões de organização interna, determinou
que um dos carcereiros passaria a exercer vigilância no inverno, enquanto o
outro passaria a trabalhar nas três restantes estações, ou seja, primavera,
verão e outono. E, num assomo de democracia, definiu que seriam os prisioneiros
a escolher o carcereiro que ficaria num período e qual o que ficaria no outro.
Pareceria
lógico que o prisioneiro escolhesse o “carcereiro bom” para os dias mais amenos
de março a novembro, pois lá diz o ditado popular que “enquanto o pau vai e vem
folgam as costas”. Inexplicável seria ver o prisioneiro optar pela solução
inversa, preferindo ter o “carcereiro mau” a infernizar-lhe a vida a maior
parte do ano. Só um masoquista faria essa opção.
Obviamente que a estória acima contada é irreal, e traça
um retrato caricatural (propositadamente exagerado) do carcereiro bom e do
carcereiro mau. Mas tem um claro e didático objetivo em mente.
Vamos admitir que os
carcereiros são PS e o PSD. Os prisioneiros serão, naturalmente, o CDS, o PCP e
o BE. Os prisioneiros nunca deixarão de ser prisioneiros e os carcereiros sempre
serão carcereiros. Cada um no seu papel. Mas se os prisioneiros puderem
escolher o carcereiro custa a perceber que deixem, quanto mais não seja por
omissão, que o carcereiro mau assuma o controlo da prisão a maior parte do ano.
Falando agora com seriedade
gostaria de referir algumas ideias que considero importantes:
1 - acho que o voto útil é uma
séria limitação da democracia. Cada partido deve explicitar claramente as suas
opções em matérias importantes, deve apresentar-se a eleições com o seu próprio
programa e nele devem votar todos os que se identifiquem com os seus princípios
e valores.
2 – quem ganha as eleições deve
governar com o seu programa e não com o programa de outros, ou com cedências em
matérias inegociáveis.
3 – um governo de maioria
absoluta assente numa bipolarização artificial é pouco democrático. E em lugar
de termos um governo com “rédea curta”
passaremos a ter um governo em “rédea
livre”.
4 – caso haja necessidade de
acordos interpartidários para garantir a governabilidade, estes implicam
necessariamente cedências de parte a parte. Mas nunca podem ser cedências em
questões essenciais. Nem o partido maioritário deve aplicar as receitas do
partido minoritário nem este pode ser desrespeitado. Mas vejamos um exemplo em
que não pode haver cedências: um partido maioritário que defende a permanência
no euro não pode de modo algum fazer um acordo que implique aplicar a receita
do outro, que defende a saída do euro. Mas tal não invalida que possam estar de
acordo em muitas outras matérias. Aquele tema é intocável, e ponto final. Isto
só por si não deve nunca pôr em causa a governabilidade do país. Nem devem cair
na lama os “parentes” do partido minoritário por não ver aplicada a sua
receita, nem o partido maioritário pode, nesta matéria transcendente, fazer
quaisquer cedências.
5 – Vale tudo isto por dizer
que aceito pacificamente os resultados das eleições e acho que deve governar com
o seu programa quem for chamada a formar governo e tenha (ou venha a
conseguir) o necessário apoio parlamentar. A questão que se coloca é apenas
esta: vai-se conseguir um apoio parlamentar à custa de quê ou de quem?
Tenho dado por mim a pensar no
que representa haver recorrentemente uma maioria sociológica no pais e no
parlamento (PS+PCP+BE) mas que não consegue governar e entrega de mão beijada o
poder a uma clara minoria, a quem se tem de reconhecer o mérito de saber
transformar um resultado eleitoral negativo numa via para a governação, a claro
contragosto do povo. E não estou aqui a questionar os méritos ou os deméritos
de uma qualquer governação, mas apenas a assinalar o demérito de quem não sabe
transformar uma clara maioria sociológica num projeto viável de governo, por
muitas e profundas divergências que haja no seu eleitorado a propósito de
questões fundamentais. Quando não podemos escolher o caminho por onde queremos
ir, possamos ao menos escolher o caminho por onde achamos que não devemos
seguir. Chama-se a isto optar pelo mal menor. E não há mal nenhum nisso.
Por isso vejo com estupefação o
papel do PCP e do BE, partidos com forte expressão parlamentar, colocados em clara
posição de charneira, mas que se têm colocado sistematicamente fora do arco da
governação. Acho (é minha opinião convicta) que qualquer destes partidos,
nomeadamente o BE, poderia ter um enorme incremento eleitoral, passando a ser
inequivocamente o terceiro partido do nosso espetro partidário, a morder os
calcanhares ao segundo, caso viabilizasse um governo do PS, porquanto evitaria
o apelo ao voto útil e os seus eleitores poderiam, simultaneamente, expressar
em liberdade e sem temores o repúdio a uma política ou um partido sem apoiar
claramente uma outra que também não lhe agrada ou em cujos dirigentes
partidários não confia. E para tal não precisaria de ceder um milímetro nos
valores que defende nem precisaria de passar a sofrer o desgaste de um partido
que assume responsabilidades na governação. Poderia continuar fora do governo e
de mãos livres para fazer oposição e defender os seus valores e as suas
propostas. Só não poderia obstaculizar (inutilmente, como até agora) as medidas
que, para o bem e para o mal e quer queira ou não queira, precisam, na opinião
dos maiores partidos, de ser tomadas. Fazem-me lembrar o D. Quixote que, apesar
de ter um cavalo e uma espada, malbarata os seus bens e as suas energias lutando
contra um inamovível moinho de vento.
As
propostas do PCP e do BE aceitam-se ou não se aceitam, pode-se concordar ou não
com elas. São tão legítimas quanto as dos outros partidos. Mas nunca percebi a
estratégia destes partidos. Parece que preferem que o carcereiro mau tome conta
da prisão na maior parte do ano. Será que são masoquistas, ou estão-se
marimbando para o povo, que dizem defender?
Nota final: acho que quem
ficaria a perder com uma alteração estratégica do comportamento do PCP ou BE
seriam o PS e a PàF. No PS, não mais iria cair um voto dito “útil”, arriscando-se
este partido a passar a ser um eterno segundo. Quanto à PàF, poderia ficar
arredada do poder por muitos anos. Mas (e sem estar a pôr em causa os méritos
das propostas do PS ou da governação do PSD) acho que a democracia é que sairia
a ganhar.