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Mistura de pensamentos, reflexões, sentimentos; um risco, assumido; uma provocação, em tom de desafio, para que outros desçam ao terreiro; um desabafo, às vezes com revolta à mistura; opiniões, sempre subjectivas, mas normalmente baseadas no estudo, ou na experiência ou na reflexão. Sem temas tabu, sem agressividades inúteis, mas sem contenção, nem receios de ser mal interpretado. Espaço de partilha, que enriquece mais quem dá que quem recebe.

sábado, 28 de fevereiro de 2015


GRÉCIA – O MAU ALUNO

“O Syriza ficou muito longe de conseguir o que queria. Mas em vez de novas medidas de austeridade, conseguiu mais financiamento e flexibilidade em troca da promessa do combate à corrupção, à lavagem de dinheiro, à fraude em benefícios sociais e à evasão fiscal. O acordo deixado pelo governo anterior de cortar pensões e aumentar o IVA foi enterrado; o governo vai reintegrar 2100 funcionários públicos ilicitamente despedidos; os cortes na despesa não serão em salários nem pensões; o governo passou a dar apoio a quem não pode pagar a eletricidade e vais oferecer cupões de refeição para famílias sem rendimentos; volta a garantir o Serviço Nacional de Saúde que a troika retirou aos desempregados; o aumento do salário mínimo, se bem que faseado, ficou garantido; quem esteja em dificuldades em pagar dívidas ao Estado e à banca terá apoio especial; foram travadas novas privatizações.

O Syriza conseguiu um conjunto de medidas que vão no sentido inverso ao da austeridade. E conseguiu-o no pior contexto possível: a dias de ficar sem financiamento e com a Grécia sozinha no Eurogrupo.

Os resultados desta negociação não se devem avaliar pela distância entre o que a Grécia queria e o que conseguiu, mas pela distância entre o que tinha e o que conquistou. A verdade é que arrancou muito mais da Europa que a postura do bom aluno”


Daniel Oliveira – Expresso de 28 de Fevereiro 2015



 

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015


O FILME DO MOMENTO

A série que no momento passa nas televisões de todo o mundo, suscitando reações epidérmicas em muitos espetadores, relata-nos uma história que, não sendo inédita, é muito peculiar. Mas para se perceber o enredo é necessário segmentar a série em várias partes.

1.ª parte

O grupo Almeida&Filhos produzia e comercializava vários tipos de cobiçados produtos. Entre eles automóveis topo de gama, que lhe custavam 50 mil euros e que colocava no mercado ao preço de 100 mil euros. E não faltavam compradores.

O sr. Grade era um campónio que ansiava por ter um desses automóveis. Mas como aceder-lhe se custavam 100 mil euros?

Não há problemas: Almeida&Filhos também tinha forma de conceder crédito para que o sr. Grade pudesse comprar o ansiado carro. Com um juro de 10%, resolvia-se o problema.

Assim, o sr. Grade adquiriu um carro que lhe custou 100 mil euros. Pagava de juros 10 mil por ano. Ao fim de 10 anos já tinha pago 100 mil euros de juros (2 vezes o custo de produção do carro) mas continuava a dever os mesmos 100 mil. Mas tinha o carro dos seus sonhos.

Por sua vez Almeida&Filhos tinha fornecido ao sr. Grade um carro que lhe tinha custado 50 mil euros; recebeu 100 mil euros só de juros e continuava a ter um crédito de 100 mil euros.

2.ª parte

Problemas diversos na sua vida pessoal e complicações inesperadas (!!!),levaram a que o Sr. Grade começasse a manifestar dificuldade em pagar os juros a que se havia comprometido. Por sua vez instalou-se a barafunda no grupo Almeida&Filhos, que começava a ter dificuldades de cobrança junto dos seus devedores, tendo tomado decisões drásticas de controlo do crédito. Resumindo: obrigou o sr. Grade a pagar o que devia, estabelecendo um prazo curtíssimo para o efeito. Mas deu-lhe uma chance de o poder fazer com toda a “comodidade”:

- apresentou ao sr. Grade a Companhia da Tralha Lda (onde Almeida&Filhos também era sócio, com uma posição de relevo) a qual abriria uma linha de financiamento de 100 mil euros

- este empréstimo deveria ser liquidado no prazo de 5 anos

- com os 100 mil euros dessa linha de financiamento o sr Grade pagava a dívida a Almeida&Filhos

O sr. Grade aceitou a proposta, mal tendo reparado que, para liquidar o empréstimo em 5 anos, teria de passar a pagar 20 mil euros por ano mais os juros, ou seja mais do dobro do que vinha pagando nos anos anteriores.

3.ª parte

Como a mudança de regime operada na 2.ª parte tinha tido por base as dificuldades económicas, o sr. Grade não conseguiu resolver o problema e passou a não ter sequer possibilidade de pagar a totalidade dos juros à Companhia da Tralha Lda. Por isso, passados alguns anos, a sua dívida era já bastante superior aos 100 mil euros iniciais. Apresenta então à Companhia da Tralha Lda um plano de pagamento que começa por uma proposta de perdão parcial da dívida, mas acaba numa simples redução dos juros e alargamento do prazo de pagamento.

A Companhia da Tralha Lda reage muito mal à proposta do sr. Grade, particularmente o seu sócio Almeida&Filhos, que se coloca numa posição irredutível e exige o cumprimento estrito do contrato, pois eles (Almeida&Filhos) não estão mais dispostos a suportar as dívidas do sr. Grade.

 

Ainda falta muito para a série chegar ao fim, pelo que se espera com expectativa pelas cenas dos próximos capítulos. Mas quem só começou a ver a série na 3.ª parte e não sabe o que se passou nos primeiros capítulos vai ter muita dificuldade em perceber o enredo.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015


HEPATITE C

Não sou seguramente a pessoa mais indicada para falar sobre a hepatite C. Nem sequer para dissertar sobre o “valor” de cada vida humana. Nem quero entrar na análise da revolta, violenta e dramática, de quem sente que entre a sua vida e a morte existe uma barreira que se mede em euros. Nem sequer alinho numa via, que facilmente resvala para a demagogia (de parte a parte), de discutir se o SNS deve pagar ou não tratamentos que podem custar ao erário público milhares de milhões de euros. Mas há algumas facetas do problema que não posso deixar de abordar.

Admitamos que em Portugal existem 13 mil doentes com hepatite C que podem ser curados com a medicação inovadora lançada no mercado há pouco mais de um ano. Admitamos que cada tratamento custa 48.000 euros. Tratar todos estes doentes no SNS custará ao país 624 milhões de euros.

Admitamos agora que os fármacos para cada tratamento custam à indústria 1.000 euros. Nesse caso o lucro das farmacêuticas será 611 milhões, a que corresponde uma taxa de 4.600%. Estes números são, na aparência, obscenos, tanto mais quando se sabe que estão em causa vidas humanas. A questão é que o que é preciso pagar não é apenas o custo dos fármacos, mas os milhões gastos na investigação, que por norma demora anos e anos e envolve equipas numerosas, altamente qualificadas, e que habitualmente fazem centenas ou milhares de experiências frustrantes antes de acertarem na fórmula de sucesso.

Um medicamento que seja um êxito no mercado - nomeadamente quando permite salvar vidas e se aplique a um universo alargado – é um filão que a indústria farmacêutica obviamente não vai largar. Difícil é estabelecer o equilíbrio entre a necessidade de financiar um setor vital para o desenvolvimento da humanidade e um preço justo que não traduza apenas a desproporcionada relação de força entre quem não quer morrer mas não pode pagar o preço da cura. E o mercado costuma ser implacável.

É aqui que se volta a colocar a questão do apoio que o estado deve dar ao desenvolvimento científico, nomeadamente na área da saúde. É muito fácil cortar o financiamento à ciência e, no curto prazo, ninguém nota qualquer diferença nos resultados. E esse é outro grande drama – a difícil mensuração dos resultados e a demora (que pode ser de dezenas de anos) para atingi-los. Mas quando o êxito acontece os resultados podem ser espantosos. Imagine-se o que seria a cura da hepatite C ter sido uma descoberta dos nossos institutos de investigação e os fármacos serem fornecidos pela nossa indústria farmacêutica!

Quando pensamos no quanto custa a educação, a investigação e o desenvolvimento científico, deveríamos pensar primeiro em quanto custa “investir” na inação.