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Mistura de pensamentos, reflexões, sentimentos; um risco, assumido; uma provocação, em tom de desafio, para que outros desçam ao terreiro; um desabafo, às vezes com revolta à mistura; opiniões, sempre subjectivas, mas normalmente baseadas no estudo, ou na experiência ou na reflexão. Sem temas tabu, sem agressividades inúteis, mas sem contenção, nem receios de ser mal interpretado. Espaço de partilha, que enriquece mais quem dá que quem recebe.

segunda-feira, 20 de abril de 2015



JÁ SÓ QUERO ESTA SOPA DE PEDRA

 
Para quem não conhece a história da sopa de pedra vou contar uma das suas múltiplas versões, de forma muito resumida e ligeira.

Um viajante chegou exausto a uma casa isolada nos confins da serra, depois de uma jornada desgastante e praticamente sem ter comido nesse dia. Acolhido com verdadeiro espírito hospitaleiro pelo dono da casa, pede-lhe “só” um monte de palha onde pudesse pernoitar e uma panela com água e uma pedra “para fazer uma sopinha”. O dono da casa logo se prontifica a satisfazer-lhe o pedido, mas ficou curioso por saber como é que aquele esfomeado e cansado maltrapilho iria fazer uma sopa só com água e uma pedra.

O viajante pôs a água a ferver com a pedra dentro e, depois desta aquecida, provou uma colherada, que saboreou como se fosse um petisco divinal.

O dono da casa, cada vez mais curioso e perplexo, pergunta se a sopa está boa.

- Hum! Uma delícia. Mas ficaria bem melhor se lhe juntasse uma couvinha.

De pronto aparecerem as couves e o viajante repetiu a prova depois do necessário tempo de cozedura.

- Então como é que vai a sopa?

- Está bem melhor. Mas se lhe juntasse agora uma batatinha…

E logo o dono da casa, pressuroso, foi buscar uma pequena cesta com batatas.

A história repetiu-se ene vezes, com ingredientes pedidos um de cada vez pelo esfomeado viajante, a que o dono da casa ia dando acolhimento: foram feijões, um pedacinho de toucinho, chouriço, carne de porco, etc., etc., etc..

No fim, a sopa de pedra tinha um riquíssimo valor nutritivo e estava de facto uma verdadeira delícia.

 

 
Esta “estória” serve-me de introdução à história que hoje queria contar. Quando há uns bons anos me foi diagnosticado um cancro, por sinal bastante indelicado e agressivo, fiquei, obviamente, siderado. Não quis por isso alimentar falsas ilusões, mas nunca desisti de ter expectativas que pudessem ser consideradas razoáveis. E então a primeira coisa que pedi ao DDT (dono disto tudo), qual génio da lâmpada, foi um singelo, desesperado e humano desejo: que me deixasse viver mais um bom par de anos.

- Hum! Isso não te prometo. Vamos ver. Terás de viver um dia de cada vez.

- De acordo. Não te peço muito. Mas acho que mereço esse “bónus” e gostava de poder viver esses dias com alguma tranquilidade.

 
Pareceu-me que o génio da lâmpada estava predisposto a ajudar-me e a fazer por mim o que lhe fosse possível. E com o passar do tempo fui ganhando a confiança e o descaramento para ir formulando sucessivos pedidos. Os mais óbvios eram sentir-me bem e sem dores, desfrutar de muitos momentos de convívio com a família e com os amigos e que não me faltasse o dinheiro necessário para as necessidades básicas. A todos esses pedidos o génio foi condescendente e generoso, ultrapassando as minhas legítimas expectativas. Isso levou-me ao ponto de me tornar cada vez mais ousado e preciso nos pedidos.

- Gostava que ver crescer o meu primeiro neto, o Francisco - atrevi-me a pedir ao génio da lâmpada.

- Está bem. Fica sossegado Esse teu desejo será satisfeito.

- Gostava muito de poder voltar ao palcos e encenar uma peça de teatro para “o meu povo de Nogueira da Regedoura”.

E o génio da lâmpada satisfez-me o desejo. A peça foi levada à cena e foi um sucesso.

- Já trabalhei em Moçambique. Será que me deixas ir conhecer Angola?

E lá fui a Angola fazer um trabalho de consultadoria, que pessoal e profissionalmente foi muito enriquecedor.

- Gosto tanto de viajar e passar férias! Será que posso?

E lá fui conhecer mais uma ilha e viver uns dias maravilhosos com a Maria, a minha companheira de uma vida.

- Os momentos de família e com os amigos são maravilhosos.

- Vais ter oportunidades de desfrutar muitos desses belos momentos.

E foram natais e páscoas, foram passeios e convívios, incontáveis momentos de prazer ou de serena felicidade.

- Os prazeres da mesa também sabem bem.

- Vais poder saborear belas refeições e gostosos petiscos sem grandes limitações.

E foram incontáveis as tainadas em família e com amigos.

- E outros prazeres?

- Bom, não exageres e não peças demais.

- Mudemos então de tema: se me deixasses conhecer o meu segundo neto  seria uma enorme felicidade.

O génio aquiesceu e pude ver o meu neto Afonso crescer e ensinei-o a erguer-se e a andar. Passei maravilhosos momentos de pura felicidade.

Obviamente houve momentos menos bons. Em determinada altura tive mesmo de usar canadianas, caminhar era um suplício, subir escadas era quase uma impossibilidade e dormir sem dores não chegava a ser um sonho. Pensei que estava arrumado para uma vida normal e para as simples alegria de uma caminhada. Mas estava enganado. Após novo tratamento voltei a poder andar, desapareceram as dores e regressei à rotina, retomando uma vida normal, desde que regrada.

- A minha filha Sara vai casar. Já assisti ao casamento da Sofia e não queria faltar a este momento tão importante na vida da família.

- Esse teu desejo será satisfeito – disse o génio da lâmpada, que parecia que simpatizava sinceramente comigo.

- Se não fosse pedir muito, gostava de encenar um novo espetáculo de teatro para o povo da minha terra.

- Que não seja por isso que te fines de tristeza

E o espetáculo já começou a ser preparado.

- Já escrevi dois livros. Um de poesia e outro sobre a minha área profissional, a economia. Mas como o que eu gosto é de escrever, e ao longo do tempo fui escrevinhando umas crónicas, ficava muito feliz se agora as publicasse em livro.

- Vamos a isso. Também eu estou com curiosidade em ler os teus escritos.

E o Livro de crónicas e afins está praticamente pronto para ser publicado.

 
De tempos a tempos vou desafiando o génio da lâmpada, continuando a formular sucessivos pedidos, um singelo desejo de cada vez. E ele parece condescendente e disponível para satisfazer todos os meus caprichos.

 
O meu tempo de sobrevida após a deteção do cancro acabou por ser uma verdadeira sopa de pedra. Os anos que vivi depois de conhecer o veredito têm sido extremamente saborosos, cheios, preenchidos. Ao contrário do António Variações, em cada momento eu estou bem onde estou e com quem estiver. Saboreei todos os minutos e segundos com uma sofreguidão e uma enorme vontade de viver cada instante com toda a intensidade. Tenho-me deleitado a saborear o magnífico “repasto” que eu próprio fui preparando com os ingredientes por mim solicitados e que o génio da lâmpada generosamente me vai facultando.

Agora já só quero saborear esta gostosa sopa de pedra, que me alimenta o corpo e enriquece e inebria a alma.

 
Abril de 2015

 
Alexandre Ribeiro

3 comentários:

  1. Leio, volto a ler... e aprendo!

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  2. Só espero que nunca precises de aplicar a receita.
    Um abraço

    Alexandre Ribeiro

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    1. Obrigada Alexandre pelo belo texto, pela partilha e sobretudo pela grande lição de vida!
      Não me surpreende propriamente...Sempre te conheci assim: empreendedor (quando ainda nem estava na moda), multifacetado, sempre cheio de sonhos, projetos e muito importante...projetos concretizados! Nunca te faltou coragem nem dinamismo para os assumir e ir em frente.

      Claro que, perante a adversidade, muitos baixariam os braços, fechando-se em sentimentos de auto-compaixão, revolta, injustiça, lamento. Tu não: manténs-te coerente e fiel aos princípios que sempre te regeram, ainda com mais empenho! Fazes da fraqueza força, da adversidade felicidade, aquela felicidade madura e serena de quem vive a vida como ela deve ser vivida, saboreando o instante, o momento, as pequenas coisas, e sobretudo as pessoas que te rodeiam, as que mais gostas e as outras, as que observas e te inspiram para escrever as tuas crónicas, as tuas peças de teatro.
      Enfim, decidiste ser feliz e fazer os outros felizes. Só posso sentir uma imensa admiração!

      Fico a aguardar com expectativa o teu próximo livro e a tua peça de teatro, sabendo que não ficas por aí, outros projetos virão, a tua sopa de pedra está longe de ficar pronta!
      Um grande abraço
      Fátima

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