JÁ SÓ QUERO ESTA SOPA DE PEDRA
Para quem não
conhece a história da sopa de pedra vou contar uma das suas múltiplas versões,
de forma muito resumida e ligeira.
Um viajante
chegou exausto a uma casa isolada nos confins da serra, depois de uma jornada
desgastante e praticamente sem ter comido nesse dia. Acolhido com verdadeiro
espírito hospitaleiro pelo dono da casa, pede-lhe “só” um monte de palha onde pudesse pernoitar e uma panela com água
e uma pedra “para fazer uma sopinha”.
O dono da casa logo se prontifica a satisfazer-lhe o pedido, mas ficou curioso por
saber como é que aquele esfomeado e cansado maltrapilho iria fazer uma sopa só
com água e uma pedra.
O viajante pôs
a água a ferver com a pedra dentro e, depois desta aquecida, provou uma
colherada, que saboreou como se fosse um petisco divinal.
O dono da
casa, cada vez mais curioso e perplexo, pergunta se a sopa está boa.
- Hum! Uma delícia. Mas ficaria bem melhor
se lhe juntasse uma couvinha.
De pronto
aparecerem as couves e o viajante repetiu a prova depois do necessário tempo de
cozedura.
- Então como é que vai a sopa?
- Está bem melhor. Mas se lhe juntasse agora
uma batatinha…
E logo o dono
da casa, pressuroso, foi buscar uma pequena cesta com batatas.
A história
repetiu-se ene vezes, com ingredientes pedidos um de cada vez pelo esfomeado viajante,
a que o dono da casa ia dando acolhimento: foram feijões, um pedacinho de
toucinho, chouriço, carne de porco, etc., etc., etc..
No fim, a
sopa de pedra tinha um riquíssimo valor nutritivo e estava de facto uma
verdadeira delícia.
Esta “estória” serve-me de introdução à história
que hoje queria contar. Quando há uns bons anos me foi diagnosticado um cancro,
por sinal bastante indelicado e agressivo, fiquei, obviamente, siderado. Não
quis por isso alimentar falsas ilusões, mas nunca desisti de ter expectativas
que pudessem ser consideradas razoáveis. E então a primeira coisa que pedi ao
DDT (dono disto tudo), qual génio da lâmpada, foi um singelo, desesperado e
humano desejo: que me deixasse viver mais um bom par de anos.
- Hum! Isso não te prometo. Vamos ver. Terás
de viver um dia de cada vez.
- De acordo. Não te peço muito. Mas acho que
mereço esse “bónus” e gostava de poder viver esses dias com alguma
tranquilidade.
Pareceu-me
que o génio da lâmpada estava predisposto a ajudar-me e a fazer por mim o que
lhe fosse possível. E com o passar do tempo fui ganhando a confiança e o descaramento
para ir formulando sucessivos pedidos. Os mais óbvios eram sentir-me bem e sem
dores, desfrutar de muitos momentos de convívio com a família e com os amigos e
que não me faltasse o dinheiro necessário para as necessidades básicas. A todos
esses pedidos o génio foi condescendente e generoso, ultrapassando as minhas
legítimas expectativas. Isso levou-me ao ponto de me tornar cada vez mais
ousado e preciso nos pedidos.
- Gostava que ver crescer o meu primeiro
neto, o Francisco - atrevi-me a pedir ao génio da lâmpada.
- Está bem. Fica sossegado Esse teu desejo
será satisfeito.
- Gostava muito de poder voltar ao palcos e
encenar uma peça de teatro para “o meu povo de Nogueira da Regedoura”.
E o génio da
lâmpada satisfez-me o desejo. A peça foi levada à cena e foi um sucesso.
- Já trabalhei em Moçambique. Será que me
deixas ir conhecer Angola?
E lá fui a
Angola fazer um trabalho de consultadoria, que pessoal e profissionalmente foi
muito enriquecedor.
- Gosto tanto de viajar e passar férias!
Será que posso?
E lá fui
conhecer mais uma ilha e viver uns dias maravilhosos com a Maria, a minha
companheira de uma vida.
- Os momentos de família e com os amigos são
maravilhosos.
- Vais ter oportunidades de desfrutar muitos
desses belos momentos.
E foram
natais e páscoas, foram passeios e convívios, incontáveis momentos de prazer ou
de serena felicidade.
- Os prazeres da mesa também sabem bem.
- Vais poder saborear belas refeições e
gostosos petiscos sem grandes limitações.
E foram
incontáveis as tainadas em família e com amigos.
- E outros prazeres?
- Bom, não exageres e não peças demais.
- Mudemos então de tema: se me deixasses
conhecer o meu segundo neto seria uma
enorme felicidade.
O génio
aquiesceu e pude ver o meu neto Afonso crescer e ensinei-o a erguer-se e a
andar. Passei maravilhosos momentos de pura felicidade.
Obviamente
houve momentos menos bons. Em determinada altura tive mesmo de usar canadianas,
caminhar era um suplício, subir escadas era quase uma impossibilidade e dormir
sem dores não chegava a ser um sonho. Pensei que estava arrumado para uma vida
normal e para as simples alegria de uma caminhada. Mas estava enganado. Após
novo tratamento voltei a poder andar, desapareceram as dores e regressei à
rotina, retomando uma vida normal, desde que regrada.
- A minha filha Sara vai casar. Já assisti
ao casamento da Sofia e não queria faltar a este momento tão importante na vida
da família.
- Esse teu desejo será satisfeito –
disse o génio da lâmpada, que parecia que simpatizava sinceramente comigo.
- Se não fosse pedir muito, gostava de
encenar um novo espetáculo de teatro para o povo da minha terra.
- Que não seja por isso que te fines de
tristeza
E o
espetáculo já começou a ser preparado.
- Já escrevi dois livros. Um de poesia e
outro sobre a minha área profissional, a economia. Mas como o que eu gosto é de
escrever, e ao longo do tempo fui escrevinhando umas crónicas, ficava muito
feliz se agora as publicasse em livro.
- Vamos a isso. Também eu estou com
curiosidade em ler os teus escritos.
E o Livro de crónicas e afins está
praticamente pronto para ser publicado.
De tempos a
tempos vou desafiando o génio da lâmpada, continuando a formular sucessivos
pedidos, um singelo desejo de cada vez. E ele parece condescendente e
disponível para satisfazer todos os meus caprichos.
O meu tempo
de sobrevida após a deteção do cancro acabou por ser uma verdadeira sopa de
pedra. Os anos que vivi depois de conhecer o veredito têm sido extremamente
saborosos, cheios, preenchidos. Ao contrário do António Variações, em cada
momento eu estou bem onde estou e com quem estiver. Saboreei todos os minutos e
segundos com uma sofreguidão e uma enorme vontade de viver cada instante com toda
a intensidade. Tenho-me deleitado a saborear o magnífico “repasto” que eu próprio fui preparando com os ingredientes por mim
solicitados e que o génio da lâmpada generosamente me vai facultando.
Agora já só
quero saborear esta gostosa sopa de pedra,
que me alimenta o corpo e enriquece e inebria a alma.
Abril de 2015
Alexandre
Ribeiro
Leio, volto a ler... e aprendo!
ResponderEliminarSó espero que nunca precises de aplicar a receita.
ResponderEliminarUm abraço
Alexandre Ribeiro
Obrigada Alexandre pelo belo texto, pela partilha e sobretudo pela grande lição de vida!
EliminarNão me surpreende propriamente...Sempre te conheci assim: empreendedor (quando ainda nem estava na moda), multifacetado, sempre cheio de sonhos, projetos e muito importante...projetos concretizados! Nunca te faltou coragem nem dinamismo para os assumir e ir em frente.
Claro que, perante a adversidade, muitos baixariam os braços, fechando-se em sentimentos de auto-compaixão, revolta, injustiça, lamento. Tu não: manténs-te coerente e fiel aos princípios que sempre te regeram, ainda com mais empenho! Fazes da fraqueza força, da adversidade felicidade, aquela felicidade madura e serena de quem vive a vida como ela deve ser vivida, saboreando o instante, o momento, as pequenas coisas, e sobretudo as pessoas que te rodeiam, as que mais gostas e as outras, as que observas e te inspiram para escrever as tuas crónicas, as tuas peças de teatro.
Enfim, decidiste ser feliz e fazer os outros felizes. Só posso sentir uma imensa admiração!
Fico a aguardar com expectativa o teu próximo livro e a tua peça de teatro, sabendo que não ficas por aí, outros projetos virão, a tua sopa de pedra está longe de ficar pronta!
Um grande abraço
Fátima