Texto

Mistura de pensamentos, reflexões, sentimentos; um risco, assumido; uma provocação, em tom de desafio, para que outros desçam ao terreiro; um desabafo, às vezes com revolta à mistura; opiniões, sempre subjectivas, mas normalmente baseadas no estudo, ou na experiência ou na reflexão. Sem temas tabu, sem agressividades inúteis, mas sem contenção, nem receios de ser mal interpretado. Espaço de partilha, que enriquece mais quem dá que quem recebe.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015


AINDA O MASSACRE DE PARIS

Sobre o massacre de Paris têm sido tentadas diversas explicações, nomeadamente baseadas em razões históricas e sociológicas.

Na minha opinião nenhuma delas é minimamente consistente para explicar (e muito menos justificar) estes atos hediondos.

Fala-se em vingança resultante do movimento das cruzadas do séculos XI e XII. Mas basta pensar nas barbaridades cometidas hoje nos países de origem dos fundamentalistas e nas pretensas regras da “charia”” aplicadas aos próprios muçulmanos (mutilações, apedrejamentos, assassinatos por motivos fúteis, total desrespeito pelos mais elementares direitos humanos) para verificarmos que não pode ser aí encontrada a explicação. Também não colhem, quanto a mim, e por idênticas razões, as explicações destes atos com base nas condições em que os islâmicos vivem na Europa e nas dificuldades de integração. O maior viveiro de jihadistas e um dos países onde a charia é aplicada pelo estado com todo o fervor é a Arábia Saudita, país onde o petróleo abunda e supostamente não há pobres. E os portugueses (só a título de exemplo) não apresentam em França os problemas de integração de que se queixam os islâmicos. Nem pouco mais ou menos.

Na Europa não é permitido ensinar fascismo, nazismo ou racismo, mas permite-se ensinar islamofascismo e aceitam-se mesquitas que funcionam como centros de recrutamento de jihadistas. Deixemo-nos de masoquismos e olhemos o problema de frente. O tempo da inquisição e das cruzadas já passou há muitos séculos e a igreja católica, que tantos erros cometeu nessa fase, mas que não tem o terror e a guerra inscritos no seu ADN herdado da Bíblia (mas antes o perdão e a oferta da outra face a quem nos ofende), fez entretanto um percurso notável, enquanto o fundamentalismo islâmico continua no século XXI mergulhado no mais obscuro período da idade média e sem dar sinais de qualquer progresso, antes pelo contrário.

Vejamos o que diz José Rodrigues dos Santos em entrevista à revista Sábado de 22 de Janeiro:

“Há uma série de líderes ocidentais que dizem que o Islão é uma religião pacífica que foi sequestrada por um bando de extremistas. Esta é a versão politicamente correta. Mas será verdadeira? As pessoas que dizem isso nunca leram uma linha do Alcorão. Limitam-se ao politicamente correto. Eu li o Corão e os ahadith (conjunto de leis, lendas e histórias sobe a vida de Maomé) e o que encontrei é perturbador. Muitos dos atos levados a cabo pelos fundamentalistas não se devem a atos de loucura, mas a injunções do Alcorão e dos ahafith. Maomé liderou exércitos em mais de 70 batalhas. Maomé não era um pacifista. Era um líder militar. O que fazem os líderes militares? Matam e mandam matar.

Muita gente fala do fundamentalismo islâmico sem alguma vez ter estudado essa ideologia. As pessoas limitam-se a exprimir ideias feitas do estilo “o Islão é pacífico e esta gente anda a adulterar a sua mensagem de amor”. Existe uma vertente violenta nesta religião. Os fundamentalistas não inventaram nada. Eles conhecem de cor os versículos e os ahadith de apologia da guerra. O que se passa é que acreditam que tudo o que está nos textos é literalmente verdadeiro  (e para cumprir, digo eu). Existe um ahadith em que Maomé diz que quem morrer em jihad tem lugar garantido no paraíso, por mais pecados que tenha cometido. Mais, terá 72 virgens à sua disposição. É tudo levado à letra”.

Os praticantes pacíficos do islamismo e que absorveram e/ou aceitam os valores culturais da Europa e do Ocidente em geral – desde logo a liberdade e os direitos humanos - terão de ser chamados a cooperar com os estados onde as suas comunidades se instalaram e deverão ser responsabilizados pela defesa desses valores, sob pena de perda de nacionalidade, expatriação ou sanções semelhantes e, obviamente, terão de sujeitar-se estritamente às leis vigentes no país de acolhimento. Isto tem de ser válido para comunidades islâmicas, ciganos ou quaisquer outras comunidades mais resistentes à integração. Quem melhor conhece e melhor pode controlar os extremistas e os desintegrados que os próprios líderes? Tem de haver uma estreita cooperação entre os estados e os líderes dessas comunidades.


quinta-feira, 22 de janeiro de 2015


JE SUIS CHARLIE

Sobre os recentes acontecimentos de Paris já foi dito praticamente tudo. É por isso tempo de deixar assentar a poeira e fazer sínteses. Fica a pairar no ar um conjunto de perguntas para as quais há respostas para todos os gostos:

Estaremos em presença de uma guerra religiosa? Está latente um choque de civilizações? Trata-se de uma vingança histórica? Ou de uma vingança de pessoas desintegradas e ressabiadas? Há um Islão político com planos de domínio?

Não vou (para já) dar respostas ou emitir a minha opinião, limitando-me a transcrever excertos de análises e artigos de opinião que vão desde explicações remotas até causas próximas, refletindo visões muito díspares sobre o tema.

Prevalecia a ideia de que os cristãos se deviam congregar, abandonar terras, casas, esposas e filhos e marchar para a Palestina para libertar Jerusalém do infiel, ganhando indulgências que libertassem do pecado e, se a morte ocorresse na viagem ou na guerra, a entrada direta no reino dos céus. A cruzada, para além do impulso espiritual, radicava na decorrência normal do estado de guerra: violência, pilhagem e morte. Um exército de cruzados só podia existir se o saque e a aquisição de novos territórios fossem decorrências normais da sua ação - Visão História dedicada às cruzadas século XI, XII e XIII.

Não se apaga da memória coletiva a estupidez da inquisição, os excessos das cruzadas ou a violência da colonização - Expresso de 10 de Janeiro – Martim Avillez Figueiredo

Das crueldades da luta contra as revoltas escravas, ao modus operandi do regime de Hitler, passando pelas cruzadas e terminando na forma como nos séculos XXVI a XX se aniquilaram populações indígenas um pouco por todo o mundo… não podemos dizer que somos tolerantes no nosso ADN - Visão  de 15 de Janeiro

A resposta do jornal atacado, coerente com a sua atitude provocadora de sempre, foi a única que podia ser tomada para gritar, alto e bom som, que não se rende ao terror. E essa coragem impunha-se. E deve ser louvada. Mas, como era inevitável, contribuiu para exacerbar ainda mais o discurso dos fanáticos que reclamaram a autoria do massacre e de todos os outros que o aplaudiram e gostariam de ter praticado. Os terroristas não serão derrotados na Europa se não o forem antes na origem. Para que tal aconteça será indispensável o apoio ativo e determinado dos estados e dos povos de onde emergiram e que, até agora, têm sido as maiores vítimas  - Expresso de 17 de Janeiro – Fernando Madrinha

Defender a liberdade de publicar cartoons provocatórios não é gostar deles, concordar com eles ou até aprovar a sua publicação. Para defender a liberdade do outro falar não temos a obrigação de usar a liberdade como ele a usa. A nossa liberdade de expressão também passa pela autocensura - Expresso de 17 de Janeiro – Daniel Oliveira

Se um indivíduo muçulmano destratar a mulher, se forçar a filha a casar, se violar mulheres por elas usarem minissaia, se disparar a cotovia do mal sobre um jornalista, um indivíduo deve ser preso e, se necessário, deportado. O problema é que muitos tendem a considerar que estes atos não são crimes mas sim fenómenos culturais caso sejam perpetrados por um muçulmano - Expresso de 17 de Janeiro – Henrique Raposo, a propósito da forma como na Europa são muitas vezes tratados os crimes perpetrados por muçulmanos.

Todos os terroristas islâmicos vêm de estados falhados, de sociedades iníquas e despóticas e, pela cobardia e pelo terror, preferem atacar as sociedades livres que invejam e que os acolhem, em lugar de se dedicarem a transformar as sociedades medievais de onde vêm ou onde vivem. O que temos de levar a sério é a complacência do mundo muçulmano para com aqueles que invocam a sua fé e a sua doutrina para espalhar o terror e minar os fundamentos da s sociedades em que vivemos. O terrorismo islâmico conseguiu já impensáveis vitórias na forma como nos tornamos sociedades policiadas - Expresso de 10 de Janeiro – Miguel Sousa Tavares

O ataque ao Charlie Hebdo organizado como uma operação militar, não foi um ato desesperado. Tal como o 11 de Setembro não foi. Foi um ataque planeado. Pensado. Estudado. Este Islão não nos quer matar e submeter por ser bárbaro e primitivo. Este Islão quer o poder e reproduzir o poder de um passado glorioso num tempo de decadência. Não podemos contar com o Islão moderado, porque o Islão moderado, constituído por gente decente, está acocorado de medo ou definitivamente contra a ideia de “combater os irmãos muçulmanos” - Revista do Expresso de 10 de Janeiro – Clara Ferreira Alves

Antes de derrotar um inimigo temos de o compreender, Esta é a primeira regra do combate. E os idiotas (os europeus) passaram ao lado - Revista do Expresso de 17 de Janeiro 2015, artigo onde Clara Ferreira Alves cita um combatente da EI

O velho semanário satírico, libertário e anticlerical estava a agonizar. O fanatismo vai talvez acabar por salvá-lo – Visão de 15 de Janeiro

Com as caricaturas de Maomé procuraram um monstro, depois picaram o monstro para ver se ele mordia e ele acabou por morder mesmo. …parecia-me um pouco que era como disparar sobre uma ambulância - Visão de 15 de Janeiro – Alexandre Devaux, amigo de cortonistas assassinados.

Alguns cartoons eram uma perigosa, desnecessária e politicamente irresponsável provocação - Visão  de 15 de Janeiro Dominique Moisi

Porquê insistir na representação do profeta que se sabe ofender os muçulmanos? Não estou de acordo. Não em meu nome – Expresso de 17 de Janeiro – Ana Gomes

domingo, 18 de janeiro de 2015

PARA SER GRANDE SÊ INTEIRO; NADA TEU EXAGERA OU EXCLUI; SÊ TODO EM CADA COISA; PÕE QUANTO ÉS NO MÍNIMO QUE FAZES. ASSIM, EM CADA LAGO, A LUA BRILHA TODA, PORQUE ALTO VIVE.


Fernando Pessoa

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015


EM DEFESA DAS SCUT’S (IV) (conclusão)

4 - Que herança queremos deixar aos nossos netos?

Não posso terminar esta análise sem uma referência à herança que deixamos aos nossos netos.

Custa-me até a comentar a visão daqueles que afirmam, certamente sem refletir maduramente na questão, da pesada herança que deixamos aos nossos netos, que terão de pagar as nossas “loucuras”. Nesta aceção nós somos um bando de inconscientes, que fizemos asneiras, que gastamos à tripa forra e deixamos agora a fatura para os nossos netos pagarem. Discordo em absoluto desta perspetiva.

Acho que esta visão se enquadra naquela ideia de que devemos dar tudo de mão beijada aos nossos filhos, que não são chamados a fazer qualquer esforço e só precisam de tomar conta da herança. Na minha opinião nada de mais deseducativo e de mais injusto. ”Tadinhos” dos nossos netos, que tão estouvados avós tiveram.

Afinal o grosso da fatura ainda vai ser pago por nós, que por pouco tempo beneficiaremos das vantagens das Scut’s, das quais os maiores beneficiários serão precisamente os nossos descendentes, que por muitas gerações vão colher os benefícios do nosso esforço, da nossa visão do futuro e da nossa iniciativa. É assim com as escolas e com a educação, é assim com a saúde e com os hospitais, é assim com as vias de comunicação e com o progresso que as mesmas aportam. Custa-me a perceber a curteza de vistas de quem acha que o futuro são os próximos 20 ou 30 anos e o masoquismo de quem acha que somos obrigados a dar tudo gratuitamente aos nossos filhos. Mas é a minha mera opinião. E cada qual tem a sua.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015


EM DEFESA DAS SCUT’S (III)

3 – A solidariedade nacional e o princípio do utilizador pagador

O princípio do utilizador pagador é uma boa regra de gestão e um fator de equidade. Mas esses conceitos precisam de ser aprimorados. Se compete ao estado a manutenção das estradas municipais e a obrigação de proporcionar qualidade de vida aos cidadãos que pagam os seus impostos, se o imposto automóvel e sobre os combustíveis é já tão elevado, o apregoado princípio do utilizador pagador não pode ser uma regra universal e cega, nem simplesmente sujeita aos ditames economicistas analisado por quem tem vistas curtas.

Não esqueçamos que é ao estado que compete dotar o país das necessárias infraestruturas rodoviárias, utilizando os impostos que cobra aos cidadãos. Vou falar de cor, mas não deverei andar muito longe da verdade se disser que, esquecendo a nossa moderna rede de autoestradas e vias rápidas, a nossa rede de estradas nacionais deverá ter mais de um século, sem grandes alterações no seu traçado e no seu perfil, praticamente só tendo melhorado o piso. Ora, num país com tantas assimetrias regionais, nomeadamente no confronto litoral/interior, é absolutamente necessário – e compete ao estrado fazê-lo - meter este dado na equação, sob pena de ficarmos com o interior completamente despovoado (ainda mais) e o litoral sobrelotado. Depois não se queixem, nem se lamentem, se quiserem ir às aldeias tradicionais e só encontrarem ruínas; não se queixem se quiserem visitar o nosso riquíssimo património natural e não tiverem quem os acolha; não se queixem de querer saborear a nossa preciosa gastronomia regional e encontrarem os restaurantes fechados; não se queixem de não ver no mercado os nossos apreciados produtos regionais como o fumeiro, os queijos artesanais, o azeite e muitos outros produtos que fazem as delícias dos apreciadores; não se queixem dos incêndios resultantes do abandono das matas nas zonas mais despovoadas. E como desenvolver o turismo em zonas como o Douro e Trás-os-Montes se só dispusermos de uma rede de estradas  com mais de um século?

O desenvolvimento assimétrico do país e a desertificação do interior têm um custo brutal. Algum dia, quando acordarmos, pode ser tarde demais para corrigir os erros entretanto cometidos. Mas no presente há já dados visíveis e notórios dessa realidade.

E qual a racionalidade de acabar com algumas Scut’s se o trânsito caiu drasticamente, se as receitas ficaram muito aquém do esperado, se os custos a pagar ao concessionário aumentaram em vez de diminuírem, fruto de contratos leoninos e do sistema de rendas garantidas? E que dizer de algumas cidades, vilas e aldeias que se viram de novo devassadas por um trânsito infernal? E quem trabalha longe e passou a gastar muito mais tempo nos transportes, tendo de sair de casa muito mais cedo e chegando mais tarde, suportando filas a que já não estava habituado? E o estado que passou a gastar muito mais dinheiro na manutenção de estradas municipais, que passaram a ficar muito mais degradadas em muito menos tempo? E que dizer de soluções abusivas e à margem das próprias regras definidas pelo estado, como a colocação – absurda - de portagem à passagem por Francelos, em lugar de ter o pórtico apenas à saída de Miramar? E que pensar das coimas e custos processuais de milhares de euros com que alguns cidadãos estão a ser brindados devido às limitações e erros do sistema ou a simples abusos de quem pode e manda? (Veja-se um artigo publicado no JN de 12 o corrente)

O fim de algumas (repito – algumas) Scut’s que passaram a autoestradas está já a demonstrar o erro de decisões precipitadas, tão ou mais graves que o erro de algumas construções que pecaram por excesso e em relação às quais não se pode recuar e o que há a fazer é dar o melhor aproveitamento possível às infraestruturas de que agora dispomos.

 

(continua)

 


 

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015


EM DEFESA DAS SCUT’S (II)

2 – as Scut’s serão necessárias?

Há uns anos atrás surgiu um slogan a propósito dos custos da formação:

“se acham que a educação é cara experimentem investir na ignorância”

Este slogan vem-me à memória sempre que vejo ser discutido o problema das Scut’s. Tenho visto pessoas respeitáveis, e até técnicos reputados, discutirem o problema das Scut´s com o único foco nos custos, parecendo ignorar que o interesse de qualquer investimento só pode ser avaliado no balanceamento entre custos e benefícios. Por muito elevados que sejam os custos um investimento pode ser interessante se os benefícios os suplantarem. Ora, quando vejo os críticos das Scut’s falarem dos benefícios é só para referirem a escassez das receitas de portagens. É uma análise confrangedoramente redutora, que faria qualquer defensor da ideia reprovar num exame de economia. Não haverá outros e importantíssimos benefícios? Para começar, a queda do número de mortos nas estradas (que desceu ao nível da altura em que o nosso parque automóvel era 100 mil veículos, quando hoje é sete milhões – 70 vezes maior) em grande parte deve-se à melhoria das nossas vias rodoviárias, nomeadamente troços com faixas de rodagem com separador central, sem cruzamentos ao nível, interditos a peões e com desvio do tráfego do centro das nossas cidades, vilas e aldeias, onde os atropelamentos, nomeadamente crianças, eram diários, configurando tragédias sem fim e sem preço. Quantos milhares de vidas se terão poupado nos últimos 20 anos?

E quanto se poupa em horas de viagem e desgaste nas viaturas numa viagem longa? Lembro-me que há 30 anos para ir fazer uma curta reunião em Bragança (partindo do Porto) tinha obrigatoriamente de pernoitar naquela cidade, salvo se saísse de madrugada e quisesse regressar a altas horas da noite. Pois há pouco tempo precisei de ir a Chaves, saí do Porto era quase meio-dia, almocei no destino, tratei dos assuntos que lá me levaram, regressei a casa e às 17 horas estava numa esplanada a tomar uma bebida à beira-mar. Há 30 anos isto era completamente impossível e uma mera miragem.

Experimente-se agora pôr uns pedregulhos à entrada das Scut’s e obrigar os condutores de carros ligeiros, camiões e camionetas a voltar a passar nas estradas do início do século passado, atravessando o centro das cidades, vilas e aldeias. Imagine-se qual seria a reação das populações ao perderam a qualidade de vida que as suas terras ganharam com a passagem próxima de uma Scut e com o desvio do tráfego. E pergunte-se ao maior detrator das Scut’s se ainda está disposto a ir do Porto a Bragança pela velha estrada de Amarante, galgando a serra do Marão em fila indiana atrás de camiões que não podem ser ultrapassados, descendo depois as célebres curvas de Murça. Os mais novos já nem fazem uma ideia do que é uma viagem dessas e se a tivessem de fazer achariam, com razão, que tínhamos voltado à idade média.

Não vale a pena alongar-me muito mais a falar nos horrores das nossas antigas estradas, no comodismo e na segurança das nossas Scut´s e nos benefícios económicos que nos proporcionam e ainda mais proporcionarão no futuro.

Façamos as contas aos benefícios (presentes e futuros), comparemos com os custos e então sim, estaremos honestamente a tomar uma posição séria e fundamentada sobre o interesse ou a inutilidade das Scut´s. Continuar a falar só de custos e de negociatas não acrescenta nada de útil à essência do problema, salvo se conseguirmos alterar a relação de força e as cláusulas leoninas de que usufruem as concessionárias. E mesmo quando se fala em autoestradas com escasso movimento – outro chavão que estamos sempre a ouvir - não podemos esquecer-nos do enorme benefício de que usufruem não só os utilizadores (mesmo que escassos), mas também os povoados para onde se dirigem ou de onde partem, esses muito mais difíceis de quantificar. E não podemos esquecer que nos primeiros tempos a ponte da Arrábida também esteve às moscas. Nem podemos ignorar que as Scut´s vão ser muito mais utilizadas, e provavelmente durante um período útil mais alargado, que as estradas romanas, tão caras na altura, mas tão importantes para o crescimento do império e o desenvolvimento da civilização.

 

(continua)

 

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015


EM DEFESA DAS SCUT’S (I)

Acontecimentos recentes vieram relançar o debate sobre diversos temas de interesse público, alguns dos quais muito discutidos em determinada altura, mas que gradualmente foram abandonando os fóruns de discussão, como se tivessem deixado de despertar o interesse dos cidadãos, o que não é verdade. Irei hoje abordar um desses temas, a questão das Scut’s (vias rodoviárias com perfil de autoestradas mas sem custos para o utilizador). Vou dividir a minha análise em 4 capítulos:

         1 – negócios e negociatas em torno das Scut’s

         2 – as Scut’s serão necessárias?

         3 – a solidariedade nacional e o princípio do utilizador/pagador

         4 - a herança que deixamos aos nossos netos


1 – Negócios e negociatas em torno das Scut’s
É evidente, mas era inevitável, que as Scut’s geram um negócio de muitos milhões. Nada a obstar se os negócios forem tratados com a necessária lisura por todos os parceiros envolvidos, a começar pelo estado, que tem o estrito dever de proporcionar a melhor qualidade de vida aos cidadãos e tem a obrigação de defender os seus interesses.


Não querendo aqui entrar em processos de intenções, nomeadamente direcionados a A ou B, há artigos e até livros publicados onde ficam claras as negociatas que as Scut’s proporcionaram. Muitas empresas e muita gente terá ganho muito dinheiro com a construção de mais estradas que as estritamente necessárias, com custos muito acima do razoável, onde as concessionárias terão feito contratos leoninos com taxas de rentabilidade garantidas muito superiores às que um mercado verdadeiramente concorrencial proporcionaria. A acrescentar a isso temos autarquias a impor a sua vontade para alimentar vaidades e servir clientelas. Em suma, são evidentes os excessos, há fumos de corrupção e deteta-se à légua a captura do estado pelos interesses do costume.


Tudo isto são lugares comuns que deixam o cidadão honesto desconfiado e furioso, com toda a razão. Excessos, clientelismo, ganhos ilícitos ou imorais e corrupção “parecem” estar omnipresentes no dossier “Scut’s. A isso pode juntar-se a inoportunidade de o país ter de gastar agora tanto dinheiro em momento de enormes dificuldades financeiras.


Nenhum sensato chefe de uma família normal, com 3 ou 4 elementos no agregado familiar, pertencente à classe média, construiria uma casa de luxo, com 10 quartos, numa zona residencial privilegiada, pagando ao empreiteiro uma verba acima da que conseguiria se entregasse a obra a um concorrente, ficando a suportar uma prestação bancária que atiraria as suas finanças para despesas acima dos rendimentos da família.
Mas todo o chefe de família aspira, legitimamente, a ter uma casa decente e confortável, ajustada à dimensão do seu agregado, estando disposto a suportar durante 20, 30 ou 40 anos uma prestação justa, mesmo que dura, desde que enquadrável no seu orçamento familiar.


Mais uma vez teremos de avaliar a dimensão correta das coisas e as aspirações legítimas dos cidadãos ou de todo um povo, confrontadas com os excessos, associados a erros e negociatas, que uns têm de pagar e de que outros beneficiem ilegítima ou excessivamente.E dito isto, para que fique clara a minha “declaração de interesses”, vamos passar ao que aqui me trouxe


(continua)




 

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015


O ERRO DE CAMILO LOURENÇO E JOSÉ GOMES FERREIRA (III) - Conclusão

No final de 2008, mais de um ano depois de ter estalado a crise nos Estados Unidos e que afetou todo o mundo, particularmente a Europa, a nossa dívida situava-se ainda abaixo dos 72% do PIB. Belos tempos, diremos hoje. Em 2011, com 3 anos de crise a martirizarem particularmente a periferia da Europa, quando em Portugal se preparavam eleições e a entrada da troika, a dívida estava (já ou ainda) nos 94% do PIB. A responsabilidade pela passagem dos 72% para os 94% reparte-se, em proporções que não quero especular, entre os erros do segundo mandato de Sócrates, a crise internacional e a resposta pífia e suicida da comunidade europeia.

É verdade que posteriormente o valor da dívida teve de ser corrigido, nomeadamente pela incorporação de dívidas das autarquias e das empresas públicas, que até então tinham servido para desorçamentar despesas que deveriam constar do Orçamento do Estado, tendo assim ficado escondidas das contas públicas.

Com muita falta de rigor e de objetividade, mas com algum equilíbrio e bom senso, poderemos dizer que, no dealbar da crise internacional, o valor real da nossa dívida situar-se-ia, com grande amplitude na margem de erro, algures entre os 80% e os 100% do PIB, ou seja, 20%, 30% ou 40% acima do valor a que deveria situar-se a nossa dívida para ser considerada normal, equilibrada, perfeitamente controlável e pagável. Ora, se nós estamos neste momento com uma dívida da ordem dos 130% do PIB tal significa que estamos também 20%, 30% ou 40% acima do valor que supostamente teríamos se não nos tivesse caído em cima a crise internacional, com todas as consequências que daí advieram.

A conclusão a retirar daqui é óbvia e imediata: se é verdade que a origem da nossa crise tem a ver com os nossos erros (análise com a qual estou de acordo), a dimensão atual da mesma significa que a crise internacional teve um peso enorme no avolumar da dívida, podendo significar a diferença entre uma dívida pagável e uma dívida impagável; entre uma austeridade necessária mas moderada e uma austeridade brutal; entre resolvermos o problema em 3 ou 4 anos ou termos de andar uma vida inteira a pagar dívidas. E estas diferenças, como é óbvio, fazem toda a diferença.

E é nesta vertente que eu divirjo acentuadamente de CL e JGF. Não quero cometer a injustiça de dizer ou pensar que eles ignoraram a crise internacional. Muito menos ainda minimizar o relevante papel pedagógico que têm tido junto do grande público. Mas não há dúvida que desvalorizaram a crise internacional, quase a tratando como irrelevante para o caso português. Fartaram-se de carregar nas tintas das nossas culpas, alinhando com aqueles que entendem que somos culpados de tudo e mais alguma coisa; esqueceram que a solução seguida em Portugal (e outras vítimas) serviu claramente alguns países “amigos”, permitindo-lhes resolver a sua crise bancária (também) à nossa custa; parecem endeusar os sacrossantos mercados como nossos particulares amigos, esquecendo quanto se fartaram de ganhar à nossa custa; parecem considerar natural que um país pague 0% de juros pelos capitais que recebe e outros paguem mais de 20%; parecem não ter reparado que quem fez subir os juros para 20% aceitou agora descê-los para cerca de 3%, sem que tal mudança seja compreensível e tenha uma base objetiva; parecem ter esquecido o enorme peso nas nossas contas que alguns casos de polícia (BPN, BES, corrupção, etc.) têm no valor da dívida que os cidadãos portugueses terão de pagar: parecem ter esquecido a importância para os países periféricos das imperfeições do euro desde a sua conceção; parecem esquecer que o excesso de austeridade e o garrote dos credores é responsável pela brutal queda do PIB e pela subida vertiginosa do desemprego, com todos os problemas que daí advém; parece não terem visto o nosso tecido produtivo a ficar desfeito em fanicos, não por causa das nossas dívidas mas pelo descomunal esforço exigido à sua cobrança. Como costuma dizer-se, deixamos ir para o esgoto a criança juntamente com a água suja do banho.

Em suma: CL e JGF quase passaram uma esponja por cima de tantos responsáveis e desvalorizaram a crise internacional, para porem um enfoque quase exclusivo na irresponsabilidade dos portugueses e dos seus dirigentes.

Não posso aqui deixar de referir um problema que julgo ter estado sistematicamente a escapar à compreensão do público: a segurança social precisa de uma nova reforma que ajuste as taxas de desconto, os anos de desconto e o valor das pensões às novas condições determinadas principalmente pelo aumento da esperança de vida. Mas neste momento o grande e mais imediato problema tem a ver com a taxa de desemprego. Se hipoteticamente a taxa de desemprego subisse para 40% todas as receitas correntes provenientes dos descontos dos trabalhadores e contribuições das entidades patronais seriam necessárias para pagar subsídios de desemprego, nada sobrando para reformas. Assim, o desemprego é o primeiríssimo problema que urge resolver para equilibrar as contas da segurança social. Se resolvermos este problema as receitas sobem de imediato e as despesas caem significativamente. Com o nível de desemprego em que estamos é que não há solução.

Repetindo o que já disse, estou de acordo com a análise de CL e JGF quanto à primeira origem da crise e quanto às soluções preconizadas para a sua superação, nomeadamente a necessidade da austeridade e o imperioso equilíbrio das nossas contas públicas. Mas, por favor, parem de nos tratar como uns irresponsáveis e parem de louvar os sacrossantos mercados e os países que dominam o mundo, os quais, muito mais do que nos ajudaram quando precisávamos, trataram de nos esfolar a pele e nos sugaram (e vão continuar a sugar) até ao tutano.