Texto

Mistura de pensamentos, reflexões, sentimentos; um risco, assumido; uma provocação, em tom de desafio, para que outros desçam ao terreiro; um desabafo, às vezes com revolta à mistura; opiniões, sempre subjectivas, mas normalmente baseadas no estudo, ou na experiência ou na reflexão. Sem temas tabu, sem agressividades inúteis, mas sem contenção, nem receios de ser mal interpretado. Espaço de partilha, que enriquece mais quem dá que quem recebe.

quinta-feira, 27 de novembro de 2014


MISSÃO EM ANGOLA (VIII)

Colégio de Benguela

O Colégio de Benguela começou a funcionar em 2013, mas já tem 120 alunos. Tem capacidade para 700, desde a classe infantil até à saída para a faculdade. Foi um investimento de 5 milhões de euros, feito quase todo com capitais próprios e só residual recurso à banca para financiar despesas no ano de arranque.

Tem instalações espetaculares; estão a construir uma grande piscina; tem um gimnodesportivo ao ar livre; tem, dentro das instalações do colégio, ao fundo do jardim, 42 quartos para os professores deslocados, com uma cozinha comum e sala de convívio. As salas estão equipadas com as mais modernas tecnologias: quadros interativos, projetores, etc…; tem inúmeras salas ATL; laboratórios muito bem equipados; refeitório amplo, muito arejado e limpo; a cozinha está muitíssimo completa (quem nos dera ter a cozinha de Sandim equipada como esta) e apta a fornecer 1.300 refeições. Muita informação e imagens podem ser vistas em www.facebook.com/colegiobenguela.

Pareceu-me também que em termos pedagógicos o projeto foi cuidadosamente preparado e a pessoa escolhida muito competente. Até se vê nos horários afixados, com uma qualidade de apresentação invejável (a reprografia também é, para não variar, excelente). Até nos jardins há obras de arte, com uma enorme árvore toda esculpida em baixo relevo, com figuras humanas e animais, um trabalho feito por verdadeiros artistas profissionais.

Os uniformes dos alunos primam pelo bom gosto e elegância. Parecem desenhados pela Fátima Lopes. A vigilância à escola é feita 24 horas/dia, por vários seguranças, fardados a rigor e com o aprumo e orgulho que os negros costumam pôr nas paradas militares.

Esta escola, construída, paga e dirigida por portugueses, em Portugal (ou na Europa) estaria no topo, nos vários itens em que possa ser avaliada. Mas obviamente não tem rigorosamente nada a ver com as escolas normais de Angola. E pouco com a generalidade das escolas portuguesas.

A propina por aluno fica entre 300 a 500 euros por mês, valor que pode dobrar com a alimentação, as atividades extracurriculares e os transportes. Têm carrinhas que levam os alunos a casa, inclusivamente ao Lobito, de onde é oriunda metade da população escolar.

O dia foi intenso mas muitíssimo interessante

(CONTINUA)

segunda-feira, 24 de novembro de 2014


MISSÃO EM ANGOLA (VII)

Deslocação a Benguela

Um domingo fomos almoçar a Benguela. Benguela fica a 35 kms do Lobito. O percurso é feito por “autoestrada”. Uma autoestrada muito especial, já que atravessa povoações, e nessas zonas é o caos. O percurso até nem é mau e faz-se relativamente bem. Fora das povoações é de facto muito semelhante às nossas autoestradas, quase sempre em linha reta e sem subidas nem descidas, com um engenhoso sistema engendrado para resolver o problema dos cruzamentos ao nível, evitando a construção de pontes. Mas nas povoações a “autoestrada” é um enorme perigo: existem rotundas, muitas motorizadas, passeio à face da via, passadeiras… O pior é que aqui a passadeira para peões nunca é respeitada. A passadeira só dá informação, mas não dá prioridade a quem quer atravessar a estrada e …nenhum carro pára. Por isso há muitos acidentes, até porque os peões, carregados de tralha, atravessam fora das passadeiras. O custo da viagem é económico porque aqui o gasóleo fica a 30 cêntimos o litro e a gasolina a 45.

Benguela é uma cidade com dimensão semelhante ao Lobito. Mas enquanto Lobito é mais turística, com excelentes praias e muitos restaurantes, Benguela é mais cidade do trabalho. Como cidade Benguela está bastante melhor conservada que o Lobito. Os prédios não estão tão degradados e regra geral apresentam muito bom aspeto. Por isso Benguela é mais cidade e, se nos esquecermos da Restinga, Benguela é melhor que o Lobito. Mas falta-lhe a Restinga, as praias, os hotéis e os restaurantes, que tornam o Lobito especial e um polo de atração para o turismo interno.

Fomos almoçar a casa de um advogado português, o dr. Jorge Vieira, há muitos anos radicado em Angola. Foram chegando pessoas, umas atrás das outras, a maior parte para almoçar e alguns, menos, só para o café e meia de palheta. Acabamos por nos juntar perto de trintas bicos, inclusive vários angolanos, que se vê que têm um excelente relacionamento com estes portugueses. Apesar de prevalecerem os homens, a hoste feminina era considerável.

Para além do anfitrião, o advogado, estava o arquiteto Gonçalo, português de gema, um desbocado. Dois amigos e sócios, que são os donos do Colégio de Benguela. Entre outros estavam lá 5 professores portugueses que estão a dar aulas no Colégio, 2 rapazes e 3 raparigas, todos com menos de 30 anos, todos do norte; estava a diretora pedagógica do Colégio, dr.ª Maria de Lurdes (Milu) que vim a saber que tem uma irmã médica que trabalha no Centro de Saúde de Sandim (dr.ª Filomena) e que parece que conhece a Casa dos Laceiras, quem diria?! Como o mundo é pequeno; estava o cônsul de Portugal em Benguela; estavam os diretores do Totta e do Millennium; estava um empresário português; um diretor da Escola Superior de Saúde de Benguela; o diretor do Instituto Cadastral de Angola, que é um negro retinto, da tribo dos Ovibundos, uma jóia de pessoa, sempre pronto a soltar uma sonora gargalhada e com uma boa disposição contagiante. Todos convidados para um almoço normal de um domingo normal.

O ambiente é aquele que se imagina: muita descontração e boa disposição. As pessoas facilmente estabelecem um relacionamento como se já fossem conhecidas há muito tempo. Fala-se de tudo, em grupo, de forma descontraída: de trabalho, de negócios, de política, de diversão, de futebol, de vinhos, de mulheres…

A casa era uma vivenda enorme e ao nível de uma boa vivenda citadina portuguesa. Cá fora tinha um espaço relativamente grande (talvez 12 x 15 metros), cimentado mas ladeado por coqueiros. Foi aí que comemos, debaixo de uma grande pérgola.  A comida era típica de Angola, mas com muitas reminiscências da comida portuguesa. Entre outras coisas havia feijoada, costelas, fêveras e uma galinha deliciosa, com umas pernas compridíssimas, a lembrar os flamingos. Havia calulo (um guisado de legumes) esparregado de folhas de abóbora, fungi (uma espécie de papas, só de farinha e água, a que os molhos é que dão sabor). Não faltaram bons vinhos, franceses, medalhados. No fim um delicioso bolo, com recheio de compota. Fruta local, da época: bananas, tangerinas, ameixas.  Como digestivos, a acompanhar o incontornável café, vieram aguardentes e cognacs. Mas sem tabaco, que aqui praticamente ninguém fuma.

Ao fim da tarde fomos ver o Colégio de Benguela.

(CONTINUA)

sábado, 22 de novembro de 2014


MISSÃO EM ANGOLA (VI)

Caminhos de Ferro de Benguela (CFB)

Os caminhos de ferro de Benguela são uma das 3 grandes companhias que operam em Angola na área das ligações ferroviárias. As outras são a linha de Luanda a Malange (424 kms) e a linha de Moçamedes, do Namibe a Menongue, na distância de 501 kms. A linha de Benguela, com 1.360 kms, é significativamente mais extensa que as outras juntas.

 A linha é uma construção do início do século passado, inaugurada em 1905, e nela chegaram a trabalhar 14 mil pessoas. Nos seus tempos áureos era muito prestigiada como companhia de caminho de ferro e permitia a penetração para o interior e o escoamento de matérias-primas oriundas do Congo e Zâmbia. Passa por Huambo (antiga Nova Lisboa), Kuito (Silva Porto) e Luena (Luso), atravessando a região dos diamantes. A linha teve limitadíssima utilização no período da guerra civil (Huambo era a zona de maior influência da Unita) devido à falta de segurança. Só em 1994 morreram 300 pessoas num despenhamento provocado por sabotagem da via.

Em 2011 a Companhia de Caminhos e Ferro de Benguela (CFB) retomou alguma normalidade no seu funcionamento, após uma total reabilitação em todo o traçado da linha, trabalho efetuado por um consórcio chinês. Dispõe agora de uma moderníssima e atrativa estação no Lobito, ponto de partida da linha. O seu percurso divide-se em dois troços distintos: um traçado, que chamaríamos urbano, que liga duas cidades costeiras – Lobito e Benguela – numa distância de 35 kms; um segundo traçado que vai de Benguela a Luena, atravessando o país, numa extensão de quase 1.300 kms, dos quais está já em funcionamento o troço Huambo-Luena.

No primeiro troço circulam 4 comboios por dia, que demoram quase hora e meia a fazer o trajeto de 35 kms, dadas as frequentes paragens, o perfil de comboio tranvia e o tipo de utilização que lhe é dada pelos utentes – até serve para transportar animais de grande porte. No segundo troço circula apenas um comboio por dia e o transporte de mercadorias é o mais relevante.

A empresa tem atualmente cerca de 1.500 trabalhadores e deverá, num curto prazo, fazer crescer os seus efetivos em 50% para permitir a ampliação prevista no número de composições que se pretende pôr a circular.

(CONTINUA)

quarta-feira, 19 de novembro de 2014


MISSÃO EM ANGOLA (V)

Lobito

Lobito, a cidade onde fiquei instalado e onde fica a sede dos Caminhos de Ferro de Benguela, é uma “pequena” cidade tipicamente colonial, com um dos maiores portos de África, onde se inicia/termina um longo percurso ferroviário com mais de 1.300 kms, que se prolonga depois para o antigo Congo belga e Zâmbia, permitindo ligações ferroviárias que chegam a Moçambique, atravessando por isso o continente desde o Atlântico ao Índico.

Noto-lhe algumas semelhanças com Aveiro: uma cidade plana, com alguns canais, com exploração de salinas que eram o habitat natural de uma colónia de flamingos. A dimensão do casco urbano não será muito dissemelhante de Aveiro, tal como os números respeitantes à população residente. Assumiu o estatuto de cidade há precisamente 100 anos (2 de setembro de 1913), por decreto de Norton de Matos.

Hoje a região do Lobito regista quase um milhão de habitantes (cerca de 850 mil) e apresenta uma malha urbana/suburbana cheia de contrastes:

- aquilo a que poderemos chamar o casco urbano da cidade foi traçado na época de domínio português. Lobito é uma cidade bem rasgada que, no auge do período colonial (em meados do século XX) teria excelentes estruturas para a época. Deveria ser uma bela cidade para viver, um local aprazível, uma zona de forte atratividade, com oportunidades de trabalho e de negócios. A construção seguia uma cércea baixa, que obrigou a cidade espalhar-se na horizontal. Apresenta largas e retilíneas avenidas, de um só sentido, com estacionamento dos dois lados, sobrando ainda espaço que daria para 3 faixas de rodagem. Mas a cidade parece que parou no tempo. O parque habitacional está em geral bastante degradado, com vários prédios em estado lastimável, que hoje em Portugal ninguém gostaria de habitar. Os espaços comerciais ou estão recuperados, e apresentam nesse caso bom aspeto, ou estão encerrados e com ar de degradação. Se se procedesse a uma “limpeza” e recuperação geral dos prédios atuais passaria a apresentar interessantes espaços públicos, não desmerecendo das nossas cidades. Além disso há a registar o pó (negro) que nesta época se acumula por todo o lado, desde as árvores às casas, às ruas e aos automóveis.

   - a periferia da cidade é um desordenado e caótico conjunto habitacional sem fim à vista e que se estende pelos morros acima, onde residem algumas centenas de milhar de pessoas, em condições regra geral deploráveis, quer ao nível das habitações, arruamentos ou infraestruturas necessárias a um espaço habitável com a qualidade que hoje exigimos em Portugal. O meio de deslocação com que tropeçamos a cada passo é a motorizada, que se vê por todo o lado às dezenas.

   - uma outra zona, interessante, resulta de construção moderna em zonas antes desertas. Aí se concentra hoje o moderno comércio. Edifícios novos de raiz, que, pela qualidade do edificado e pelo nível das lojas e variedade dos artigos que aí se transacionam e pela facilidade de acessos não fariam má figura em Portugal.

- por último, a sala de visitas da cidade, uma zona com grande beleza natural e em bom estado de conservação - a Restinga, de que voltarei a falar com mais pormenores.

(CONTINUA)

segunda-feira, 17 de novembro de 2014


MISSÃO EM ANGOLA (IV)

O povo angolano

O “povo” angolano foi para mim uma das mais agradáveis surpresas que me foram reservadas. Eu, por preconceito e desconhecimento, considerava os angolanos prepotentes e arrogantes. E esperava um clima de alguma intimidação, de segurança à força das armas e recolhimento a casa ao escurecer, aos aldeamentos ou condomínios fechados. Mas mudei radicalmente de opinião, quer quanto às características idiossincráticas do povo quer no que respeita às questões de segurança.

Quanto ao primeiro ponto os meus preconceitos dever-se-iam precisamente à confusão entre elites e povo. Em Portugal não estamos habituados a falar com o “povo” de Angola. Quem costumamos ver na televisão, com quem nos cruzamos na rua ou em ambiente profissional será gente das elites angolanas (ou pessoas que a tal aspiram ou que se destacam do “povo” só porque têm o privilégio de emigrar ou viajar em passeio ou em negócios pela Europa). Pessoas que são referidas nos jornais, que se sentam à mesa das negociações, pessoas que ganham muito dinheiro a dar uns chutos numa bola. Tudo o que estas pessoas ganham, por mais enquadrável que seja nos padrões europeus, atinge uma marca verdadeiramente obscena quando comparada com os rendimentos e consequente padrão de vida do verdadeiro “povo” angolano. Talvez por isso os angolanos que conhecemos sejam habitualmente arrogantes e prepotentes. Muitos angolanos que estão em Portugal, que ocupam as embaixadas e os consulados, que aparecem mencionados nos jornais, regra geral não se integram bem no conceito de “povo, ou aspiram à mudança de escalão social, ou procuram afinidades com as elites. Mas quando lidamos com o povo genuíno, principalmente quando saímos de Luanda e particularmente quando nos deslocamos para o sul, o povo é afável, alegre, confiante no futuro. Não são agressivos, nem vejo notório ressabiamento contra os portugueses (como eu, confesso, estava à espera). Pelo contrário vi muitas manifestações de simpatia e um natural convívio, franco e aberto, em momentos de descontração. Em ambiente profissional registei cordialidade, respeito e consideração. Isto não invalida que haja portugueses ainda com alguns tiques de colonizador e alguns angolanos que apresentem os típicos tiques de novo-rico ou de um ressabiado.

Outro aspeto agradável ao nosso ouvido resulta de confirmarmos que a língua portuguesa chega praticamente a todos os estratos da população (pelo menos nas cidades) sendo já a língua materna de mais de um terço da população e a segunda língua de outro terço. Deixou de ser uma mera língua veicular para ser a língua do futuro, deixando cada vez menos espaço aos dialetos locais que, por muita simpatia e curiosidade que suscitem, estão condenados ao fracasso ou a um papel folclórico, neste caso no sentido mais nobre do termo.

 (continua)

sábado, 15 de novembro de 2014


 MISSÃO EM ANGOLA (III)

Elites e povo

Como vou falar várias vezes em povo convém fazer aqui uma pequena clarificação para apresentar uma definição concetual (sem qualquer pretensão de rigor técnico ou científico). Vou considerar que em Portugal 80% a 90% da população são o povo. Povo anónimo, que engloba o estrato mais baixo da população, toda a classe média e a classe média alta, com eventual vontade (e até capacidade) para integrar as elites, mas com escassas condições para dar esse salto qualitativo.

Vou chamar elites ao grupo que engloba os 10% a 20% da população que usufrui de um elevado padrão de vida, que tem formação cultural bastante acima da média do país, que ocupa lugares de topo nas empresas e nas instituições, que detém efetivo poder, seja a nível local, regional ou nacional, seja a nível empresarial político ou social. Se compararmos Portugal com Angola eu diria que o povo angolano abrangerá mais de 95% da população e as elites  confinam-se aos restantes menos de 5%.

Daqui resultam várias diferenças, que vão desde a grande necessidade de quadros, imprescindíveis para o impulso pedido pelo desenvolvimento, ao longo tempo necessário para produzir mudanças de fundo e duradoiras. A grande dicotomia social observada em Angola, patente na disparidade dos padrões de vida das elites e do povo, não deixa dúvidas quanto aos escolhos do caminho e ao tempo necessário para se verem resultados palpáveis.

 Luanda versus Lisboa

Se considerarmos Lisboa o centro de uma área geográfica que vive o dia a dia centrado e dependente da cidade (agora em sentido estrito), poderemos dizer que Lisboa-cidade terá entre meio e um milhão de residentes e a grande Lisboa cerca de 2 milhões, ou seja 3 vezes mais. Se pensarmos em Luanda os números serão meio milhão para qualquer coisa como 4 a 5 milhões. Ou seja, nos arredores de Luanda há uma imensa mole humana, várias vezes superior a Lisboa. Isto torna o casco da cidade absolutamente caótico quando a atividade diária obriga a um enorme fluxo de pessoas em deslocação da periferia para o centro da cidade.

Por outro lado Lisboa é uma cidade histórica, monumental, recomendável para o turismo. Manteve o centro em condições aceitáveis de habitabilidade, mas cresceu para a periferia em condições que, se não são as melhores para os nossos padrões de exigência, não têm qualquer ponto de comparação com a periferia de Luanda.

Luanda, enquanto cidade, pouco passa de um centro político e empresarial. Não tem propriamente monumentos históricos ou arquitetonicamente atrativos. E se a marginal se engalanou e apresenta uma assinável beleza e atratividade, se há um surto de construção de grandes edifícios, se há planos de reconversão total de algumas zonas (um pouco à semelhança do que foi feito na zona da Expo de Lisboa, embora a outra escala), a verdade é que - e falo por experiência de uma visita anterior a Luanda, há 25 anos - o restante casco da cidade praticamente não foi intervencionado. Talvez 80% da sua área continua profundamente inestética, degradada, carente de tudo o que é mais básico, desde a limpeza à garantia de fornecimento de água, energia ou comunicações dentro dos nossos padrões de exigência.

Os custos de habitação nesta zona são incomparavelmente mais caros que em Portugal (pelo menos o dobro) para um nível de qualidade a que eu não atribuiria um grau superior a 4 se atribuísse o nível 10 às condições médias de qualidade de vida nas cidades portuguesas. E se passarmos aos arredores e compararmos o padrão das nossas aldeias vilas/dormitório eu não atribuiria nem sequer nível 2 às “casas” da periferia de Luanda, onde vivem milhões de pessoas. Em muitos casos o nível 1 seria o mais razoável e nenhum português da classe média aceitaria hoje viver naquelas condições.

(continua)

quinta-feira, 13 de novembro de 2014


MISSÃO EM ANGOLA (II)

Integração regional

Portugal fica na Europa e está integrado na CE, com tudo o que isso implica em termos de história, hábitos, valores civilizacionais, padrões de consumo, organização empresarial e administrativa e até mesmo clima (clima temperado, com verão em Julho/Agosto , com o sol sempre a pôr-se à nossa direita).  Angola fica no hemisfério sul (vemos o sol a norte, a pôr-se à nossa esquerda, o que nos deixa completamente desorientados durante muito tempo). A cultura, a civilização, os hábitos, os costumes são totalmente outros. Isto não invalida a capacidade de entendimento e harmonização dos povos, como a história demonstra. Mas também fomenta equívocos e incompreensões que a mesma história também regista. Angola é, nesse domínio e nas relações com Portugal, um caso paradigmático.

O desenvolvimento de Angola

São inquestionáveis os passos que Angola tem dado nos últimos anos, particularmente após o fim da guerra civil que devastou o país nos anos 80 e 90. Mas há um longuíssimo caminho a percorrer até Angola chegar ao nível de Portugal, olhada pelos nossos padrões de análise. Se pensarmos nas condições degradadas das habitações do povo de Angola, se pensarmos que a esperança de vida ronda os 43 anos, se olharmos para as insuficiências da sua rede escolar, se pensarmos no nível dos empregos a que têm acesso, se considerarmos o tempo necessário para que as mudanças sociais ocorram, isso basta para concluirmos, sem margem para grandes dúvidas, que não será muito difícil vaticinar que, por mais que Portugal estagne ou regrida, e por muito que Angola progrida, no final do século XXI Portugal continuará uns passos significativos à frente de Angola. A base da análise é redutora e empírica, mas procura deixar uma ideia clara do quanto falta fazer em Angola.


(continua)

quarta-feira, 12 de novembro de 2014


 MISSÃO EM ANGOLA

 Em 2013 fui desafiado para desenvolver uma missão em Angola, no âmbito de um trabalho de reestruturação dos Caminhos de Ferro de Benguela (CFB). Esse trabalho surgiu na sequência de um decreto presidencial assinado pelo presidente José Eduardo dos Santos, que visava desenvolver as comunicações no país, adotando a via férrea como veículo preferencial e estratégico para o desenvolvimento do país e para a sua integração na região.
Não está no meu propósito fazer propriamente um relatório sobre essa missão. Mas julgo útil deixar alguns registos para memória futura e para reflexão. Daí estas “pinceladas”.
É evidente que um trabalho em pinceladas não é uma fotografia, muito menos um filme ou um álbum de fotos que exaustiva e metodicamente retrate um acontecimento. Mas também não pretendo que essas pinceladas sejam uma caricatura, pois a caricatura, por definição, distorce a realidade, o que, de maneira alguma, é meu propósito. Pretendo antes que se associem estas “pinceladas” à ideia do trabalho de um pintor que em meia dúzia de traços permite ao observador identificar o objeto pintado e perceber o contexto, mesmo estando o quadro longe de apresentar o rigor e a policromia de uma fotografia.
Em termos de resultado pretendido é uma análise completamente despretensiosa. Pretende apenas proporcionar informação aos amigos sobre esta minha “aventura africana” e, quando muito, proporcionar pontos de reflexão e enriquecimento sobre temas que são normalmente objeto de conversa de café.
Se estas pinceladas permitirem contextualizar e fundamentar uma visão (entre muitas possíveis) sobre os temas aqui apresentados terá cumprido cabalmente o seu objetivo.

 

Angola
Se habitualmente associamos os contornos geográficos de Portugal a um retângulo com 150 x 600 kms, Angola será um quase quadrado de 1.000 x 1.250 kms.  A área de Angola será qualquer coisa como 14 vezes a área de Portugal continental. E se Portugal tem 10 milhões de habitantes e Angola 20 milhões, isso significa que a densidade populacional do nosso país é cerca de 7 vezes a densidade de Angola.
Portugal é um país rico em recursos humanos e relativamente pobre em recursos minerais. Angola, ao contrário, é um país riquíssimo em produtos minerais mas com recursos humanos a apresentar notórias lacunas. Portugal é um país vocacionado para o turismo e para a prestação de serviços de elevados padrões de exigência, conhecimento ou tecnicidade, até porque tem uma assinalável vocação exportadora. Angola não tem grandes atrativos turísticos e a sua mão de obra é naturalmente desviada para trabalhos menos qualificados.
Assim, há entre Portugal e Angola inúmeros contrastes e alguma complementaridade. Portugal e Angola estão em patamares de desenvolvimento completamente diferentes. Pensando em termos globais Portugal é um país desenvolvido, com toda a carga que quisermos dar a essa expressão. Se pensarmos a nível global Portugal pertence ao clube dos ricos, embora com escassos recursos naturais. Se usarmos os mesmos critérios de análise para posicionar Angola, poderemos dizer, de forma simplificada, que este país é atrasado e pobre, embora com imensos recursos para explorar. Daí ser um país cheio de oportunidades.

(continua)

 

terça-feira, 4 de novembro de 2014


EUROPEUS?

 Mais uma crónica de Henrique Raposo, publicada no Expresso de 18 de Outubro, merece aqui uma menção. Trata-se agora de falar da “malta dos Balcãs e do Leste da Europa”, onde Raposo passou uma temporada nos seus tempos de juventude.

“Foi ali que percebi que não existe Europa ou sentimento europeu. Foi ali que percebi que o choque civilizacional ocorre ao nível mais íntimo, desde os hábitos de higiene até às memórias.

As minhas memórias compunham o quadro típico do garoto que cresceu na pasmaceira do fim da história: saídas à noite, sacar miúdas, histórias de bola, filmes, livros.

Quais eram as histórias dos meus camaradas eslavos, sobretudo os balcânicos? Quase sem excepção eram veteranos de guerra ou guerrilha. Mataram, tentaram matar, quiseram matar. E as suas histórias de sexo eram diferentes das minhas – a violação foi arma de guerra na Bósnia e Kosovo.

Eram tipos decentes, mas o nevoeiro da guerra pode abrir as portas do inferno no peito mais nobre.

Aquela malta estava apenas numa pausa entre conflitos. Nas noites de copos contavam coisas que não posso contar aqui. Mesmo quando o assunto implicava a morte do inimigo a maioria não sentia remorsos. Não eram assassinos. Eram soldados.

Lembrei-me dos meus amigos quando há dias um drone com a bandeira da Grande Albânia entrou no estádio Partisan em Belgrado. Eu vi aquele filme várias vezes. Aliás, fui ator daquele filme, que vai acabar mal. A periferia do leste tem tudo para voltar ao caos”.