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Mistura de pensamentos, reflexões, sentimentos; um risco, assumido; uma provocação, em tom de desafio, para que outros desçam ao terreiro; um desabafo, às vezes com revolta à mistura; opiniões, sempre subjectivas, mas normalmente baseadas no estudo, ou na experiência ou na reflexão. Sem temas tabu, sem agressividades inúteis, mas sem contenção, nem receios de ser mal interpretado. Espaço de partilha, que enriquece mais quem dá que quem recebe.

sábado, 15 de novembro de 2014


 MISSÃO EM ANGOLA (III)

Elites e povo

Como vou falar várias vezes em povo convém fazer aqui uma pequena clarificação para apresentar uma definição concetual (sem qualquer pretensão de rigor técnico ou científico). Vou considerar que em Portugal 80% a 90% da população são o povo. Povo anónimo, que engloba o estrato mais baixo da população, toda a classe média e a classe média alta, com eventual vontade (e até capacidade) para integrar as elites, mas com escassas condições para dar esse salto qualitativo.

Vou chamar elites ao grupo que engloba os 10% a 20% da população que usufrui de um elevado padrão de vida, que tem formação cultural bastante acima da média do país, que ocupa lugares de topo nas empresas e nas instituições, que detém efetivo poder, seja a nível local, regional ou nacional, seja a nível empresarial político ou social. Se compararmos Portugal com Angola eu diria que o povo angolano abrangerá mais de 95% da população e as elites  confinam-se aos restantes menos de 5%.

Daqui resultam várias diferenças, que vão desde a grande necessidade de quadros, imprescindíveis para o impulso pedido pelo desenvolvimento, ao longo tempo necessário para produzir mudanças de fundo e duradoiras. A grande dicotomia social observada em Angola, patente na disparidade dos padrões de vida das elites e do povo, não deixa dúvidas quanto aos escolhos do caminho e ao tempo necessário para se verem resultados palpáveis.

 Luanda versus Lisboa

Se considerarmos Lisboa o centro de uma área geográfica que vive o dia a dia centrado e dependente da cidade (agora em sentido estrito), poderemos dizer que Lisboa-cidade terá entre meio e um milhão de residentes e a grande Lisboa cerca de 2 milhões, ou seja 3 vezes mais. Se pensarmos em Luanda os números serão meio milhão para qualquer coisa como 4 a 5 milhões. Ou seja, nos arredores de Luanda há uma imensa mole humana, várias vezes superior a Lisboa. Isto torna o casco da cidade absolutamente caótico quando a atividade diária obriga a um enorme fluxo de pessoas em deslocação da periferia para o centro da cidade.

Por outro lado Lisboa é uma cidade histórica, monumental, recomendável para o turismo. Manteve o centro em condições aceitáveis de habitabilidade, mas cresceu para a periferia em condições que, se não são as melhores para os nossos padrões de exigência, não têm qualquer ponto de comparação com a periferia de Luanda.

Luanda, enquanto cidade, pouco passa de um centro político e empresarial. Não tem propriamente monumentos históricos ou arquitetonicamente atrativos. E se a marginal se engalanou e apresenta uma assinável beleza e atratividade, se há um surto de construção de grandes edifícios, se há planos de reconversão total de algumas zonas (um pouco à semelhança do que foi feito na zona da Expo de Lisboa, embora a outra escala), a verdade é que - e falo por experiência de uma visita anterior a Luanda, há 25 anos - o restante casco da cidade praticamente não foi intervencionado. Talvez 80% da sua área continua profundamente inestética, degradada, carente de tudo o que é mais básico, desde a limpeza à garantia de fornecimento de água, energia ou comunicações dentro dos nossos padrões de exigência.

Os custos de habitação nesta zona são incomparavelmente mais caros que em Portugal (pelo menos o dobro) para um nível de qualidade a que eu não atribuiria um grau superior a 4 se atribuísse o nível 10 às condições médias de qualidade de vida nas cidades portuguesas. E se passarmos aos arredores e compararmos o padrão das nossas aldeias vilas/dormitório eu não atribuiria nem sequer nível 2 às “casas” da periferia de Luanda, onde vivem milhões de pessoas. Em muitos casos o nível 1 seria o mais razoável e nenhum português da classe média aceitaria hoje viver naquelas condições.

(continua)

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