A dimensão da nossa (i)responsabilidade
Quando
chegamos a 2008 e irrompeu nos Estados Unidos a chamada “crise”, que rapidamente se propagou aos mais frágeis países da Comunidade
Europeia, Portugal foi pública e explicitamente humilhado pelos seus parceiros
e pelas instituições internacionais. Fomos rotulados de lixo, incumpridores,
despesistas, madraços, incapazes de nos governar, avessos a pagar impostos. Os
nórdicos e os germânicos consideraram, à boa maneira luterana, que cometemos “pecados”, somos “culpados” e teremos de “expiar”
os nossos erros. Internamente fomos também assaltados por sentimentos de culpa,
com acusações à esquerda e à direita, com laivos de verdadeiro masoquismo. Fizemos
asneiras, não nos soubemos governar, vamos ter de pagar por isso.
Agora
parece, finalmente, que há verdadeira consciência de que algo terá mesmo de
mudar (já deveria ter mudado há muito). Mas, assente alguma poeira, é altura de
saber onde erramos e calcular a dimensão dos nossos erros. Só assim poderemos
verdadeiramente arrepiar caminho e iniciar o processo de cura.
Todos
temos consciência que não se pode gastar mais do que o que se ganha. Quem ganha
100 e gasta 101 fatalmente terá problemas, mesmo que tenha algumas reservas no
colchão. Mas já poucos terão ideia da dimensão do esforço que é preciso fazer
para resolver os nossos problemas. Vamos procurar dar expressão numérica a
essas dúvidas.
Comecemos
pelo princípio, pelo arrolamento das principais causas dos nossos problemas. Vamos
enunciar algumas:
a) a nossa incapacidade para reformar o nosso
aparelho produtivo e fazer crescer a economia na dimensão necessária.
b) o excesso de gastos (vulgo despesismo),
principalmente associados à dimensão do estado tentacular que temos e que urge
reformar.
c) a insuficiência dos nossos impostos para
suportar o nível das despesas a que nos habituamos.
d) as incapacidades, erros e vícios dos nossos
governantes e classes dirigentes, incapazes de reformar o estado e conduzir o
país no caminho do equilíbrio e progresso sustentado.
e) a agiotagem dos mercados financeiros, ávidos de
lucros e implacáveis no ataque às suas vítimas.
f) os erros da União Europeia, iniciados com a
criação do euro, potenciados pela dificuldade em fazer a correta leitura da
crise e com a exuberante manifestação de falta de solidariedade entre
estados-membros (os piores efeitos sentir-se-ão mais tarde, quando alguns
estados vierem a provar o veneno que agora destilaram).
g) os erros da troika e a aplicação desajustada de
terapias, algumas das quais experimentais e que nos usaram como cobaias.
Perante
esta vasta panóplia de causas coloca-se a questão: qual é o contributo de cada
uma para a situação a que chegamos? Poderemos quantificar e definir
responsabilidades?
A
resposta a estas perguntas é ambígua: em alguns casos é quase impossível, mas no
que respeita a algumas destas causas é perfeitamente possível quantificar, com
muita aproximação e rigor, o peso e a dimensão do fator em causa. É o que vou
fazer. Desde já alerto que os resultados podem apresentar significativas surpresas.
A metodologia usada parte de uma “narrativa” que fez escola e de uma meta
que hoje é consensual. Tem sido dito e repetido à exaustão que os primeiros
anos deste século foram uma “década
perdida”. E, após a crise, as instituições internacionais chegaram ao
entendimento que uma dívida em redor dos 60% do PIB são, em princípio, um alvo
a atingir, significando o atingimento de um patamar de equilíbrio financeiro razoavelmente
saudável.
Vamos
então tomar por base os números do ano 2000 e vamos procurar definir as
condições que nos teriam permitido chegar a 2008 (ano do despoletar da crise
internacional) numa situação de economia e finanças “limpinhas” (dívida a representar 60% do PIB), sem deixar aos
credores e outros detratores de Portugal argumentos para nos acusarem do que
quer que fosse. Ou seja, vamos aqui traçar um “plano de ajustamento” que, a ter sido levado à prática em 8 anos
(de 2000 a 2008), nos teria permitido chegar com pleno êxito ao final do
referido período (o que se passou depois de 2008 é outro campeonato).
Vamos
admitir que a partir de 2000 seríamos governados por políticos honestos e
competentes, que contaríamos com o empenho de todos os cidadãos em prol do bem
comum e com o investimento necessário e a gestão empenhada dos nossos
empresários.
Que
condições é que deveriam ter constado desse plano de ajustamento?
Trata-se
de um verdadeiro memorando antes da troika, mas sem a troika:
1.ª via a seguir – opção pelo
crescimento
– esta via, de que hoje tanto se fala, traduz o esforço que seria necessário
fazer para que pudéssemos sustentar o nosso nível de despesas, garantindo uma
evolução equilibrada da dívida. Se o nosso PIB tivesse crescido 2,24% acima do valor real verificado
nesses 8 anos, teríamos chegado a 2008 com a dívida a representar exatamente
60% do PIB. Para se conseguir esse resultado provavelmente deveria ter sido
feita a tão falada reconversão do nosso setor produtivo. Por isso estes 2,24% representam a dimensão da nossa incompetência
por não termos conseguido definir, cumprir e executar o que devíamos.
2.ª via – através da redução da
despesa
– se tivéssemos conseguido uma redução estrutural de despesa da ordem dos dois
mil e sessenta milhões de euros, essa seria outra via para atingir o mesmo
objetivo. Isso deveria resultar da propalada e sempre adiada reforma do estado.
Assim, 2.060 milhões é a dimensão do
nosso despesismo.
3.ª via – aumento das receitas – outra forma
de conseguir o mesmo desiderato seria aumentar as receitas, através do aumento
da carga fiscal, por forma a sustentar o nosso nível de despesa. Se os governos
tivessem proposto e os portugueses tivessem aceite, ter-se-ia equilibrado o
deficit e a dívida com um aumento da carga fiscal que se traduzisse num
acréscimo das receitas do estado em 3,15%.
Este valor traduz a dimensão da nossa incapacidade de perceber que são os
nossos impostos que devem financiar as nossas despesas e a nossa aversão em
contribuir para o bem comum.
4.ª – via – solução mista - em lugar de se atuar apenas sobre uma
variável o mais lógico e correto será atuar em simultâneo sobre as três. Uma
das muitas soluções poderia ser aumentar o crescimento do PIB em 0,5%, reduzir a despesa em 800 milhões e fazer crescer a receita
em 1,25%.
5.ª via – havia ainda
uma possível 5.ª via, mas essa já não depende de nós – se as taxas de juros
(que no período 2000/2008 se situaram num valor médio de 4,7%) tivessem baixado
2,5%, o objetivo também seria
atingido. Repare-se que mesmo assim pagaríamos uma taxa de juro de 2,2%, valor
que consideramos utópico, mas que mesmo assim se situa muito acima daquilo que
os mercados exigem à Alemanha. Esta é a dimensão da nossa pequenez e da nossa
impotência.
Eis
então, claramente escarrapachada e quantificada, a dimensão da nossa
(i)responsabilidade, da nossa incapacidade em fazer as reformas que é preciso
fazer. Aqui se traduz a dimensão do nosso despesismo e da nossa fobia a pagar
impostos quando é mesmo necessário.
Comparem-se
agora estes números com os que resultam de termos sido atirados para o olho no
furacão da crise internacional, de que resultou a entrada da troika em
Portugal: o nosso ajustamento não demora 8 anos, mas sim 40; os cortes nas
nossas despesas não se ficaram pelos 2 mil milhões, mas por um valor 4 a 5
vezes maior; o aumento das receitas, via impostos, não são os mencionados 3,15%
mas aqueles que me abstenho de mencionar, pois todos o sentem e conhecem e
apresenta valores diferentes para cada classe social. E, atenção, tudo isto é
cumulativo!
Entretanto
abriram-se enormes rasgões no nosso tecido produtivo; destruí-se o equilíbrio
da nossa segurança social; reduziu-se o nível de apoio prestado pelo Serviço
Nacional de Saúde; provocou-se a emigração em massa, principalmente de jovens; elevou-se
para patamares inaceitáveis o nível do desemprego.
Identifiquei
e quantifiquei com bastante rigor e precisão a dimensão dos nossos erros
associados a algumas das causas em cima enunciadas. Digamos que correspondem
aos erros e responsabilidades pelos quais o povo português é inequivocamente responsável
e teria, sempre, de uma maneira ou de outra, de “expiar”. Mas deixo agora ao critério de cada um identificar,
avaliar e quantificar o peso e as responsabilidades imputáveis aos nossos governantes,
à troika, à Comunidade Europeia e à crise internacional, sem esquecer aqui a
responsabilidade da banca e dos mercados no despoletar e avolumar da crise.
P.S.
– contraímos uma dívida de 10 e vamos ter de pagar 100. Há quem ache, com
naturalidade, que é o preço a pagar pelas asneiras que cometemos. Esta é a
dimensão do nosso sadomasoquismo.