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Mistura de pensamentos, reflexões, sentimentos; um risco, assumido; uma provocação, em tom de desafio, para que outros desçam ao terreiro; um desabafo, às vezes com revolta à mistura; opiniões, sempre subjectivas, mas normalmente baseadas no estudo, ou na experiência ou na reflexão. Sem temas tabu, sem agressividades inúteis, mas sem contenção, nem receios de ser mal interpretado. Espaço de partilha, que enriquece mais quem dá que quem recebe.

terça-feira, 13 de maio de 2014


A dimensão da nossa (i)responsabilidade

Quando chegamos a 2008 e irrompeu nos Estados Unidos a chamada “crise”, que rapidamente se propagou aos mais frágeis países da Comunidade Europeia, Portugal foi pública e explicitamente humilhado pelos seus parceiros e pelas instituições internacionais. Fomos rotulados de lixo, incumpridores, despesistas, madraços, incapazes de nos governar, avessos a pagar impostos. Os nórdicos e os germânicos consideraram, à boa maneira luterana, que cometemos “pecados”, somos “culpados” e teremos de “expiar” os nossos erros. Internamente fomos também assaltados por sentimentos de culpa, com acusações à esquerda e à direita, com laivos de verdadeiro masoquismo. Fizemos asneiras, não nos soubemos governar, vamos ter de pagar por isso.

Agora parece, finalmente, que há verdadeira consciência de que algo terá mesmo de mudar (já deveria ter mudado há muito). Mas, assente alguma poeira, é altura de saber onde erramos e calcular a dimensão dos nossos erros. Só assim poderemos verdadeiramente arrepiar caminho e iniciar o processo de cura.

Todos temos consciência que não se pode gastar mais do que o que se ganha. Quem ganha 100 e gasta 101 fatalmente terá problemas, mesmo que tenha algumas reservas no colchão. Mas já poucos terão ideia da dimensão do esforço que é preciso fazer para resolver os nossos problemas. Vamos procurar dar expressão numérica a essas dúvidas.

Comecemos pelo princípio, pelo arrolamento das principais causas dos nossos problemas. Vamos enunciar algumas:

a) a nossa incapacidade para reformar o nosso aparelho produtivo e fazer crescer a economia na dimensão necessária.

b) o excesso de gastos (vulgo despesismo), principalmente associados à dimensão do estado tentacular que temos e que urge reformar.

c) a insuficiência dos nossos impostos para suportar o nível das despesas a que nos habituamos.

d) as incapacidades, erros e vícios dos nossos governantes e classes dirigentes, incapazes de reformar o estado e conduzir o país no caminho do equilíbrio e progresso sustentado.

e) a agiotagem dos mercados financeiros, ávidos de lucros e implacáveis no ataque às suas vítimas.

f) os erros da União Europeia, iniciados com a criação do euro, potenciados pela dificuldade em fazer a correta leitura da crise e com a exuberante manifestação de falta de solidariedade entre estados-membros (os piores efeitos sentir-se-ão mais tarde, quando alguns estados vierem a provar o veneno que agora destilaram).

g) os erros da troika e a aplicação desajustada de terapias, algumas das quais  experimentais e que nos usaram como cobaias.

Perante esta vasta panóplia de causas coloca-se a questão: qual é o contributo de cada uma para a situação a que chegamos? Poderemos quantificar e definir responsabilidades?

A resposta a estas perguntas é ambígua: em alguns casos é quase impossível, mas no que respeita a algumas destas causas é perfeitamente possível quantificar, com muita aproximação e rigor, o peso e a dimensão do fator em causa. É o que vou fazer. Desde já alerto que os resultados podem apresentar significativas surpresas.

 A metodologia usada parte de uma “narrativa” que fez escola e de uma meta que hoje é consensual. Tem sido dito e repetido à exaustão que os primeiros anos deste século foram uma “década perdida”. E, após a crise, as instituições internacionais chegaram ao entendimento que uma dívida em redor dos 60% do PIB são, em princípio, um alvo a atingir, significando o atingimento de um patamar de equilíbrio financeiro razoavelmente saudável.

Vamos então tomar por base os números do ano 2000 e vamos procurar definir as condições que nos teriam permitido chegar a 2008 (ano do despoletar da crise internacional) numa situação de economia e finanças “limpinhas” (dívida a representar 60% do PIB), sem deixar aos credores e outros detratores de Portugal argumentos para nos acusarem do que quer que fosse. Ou seja, vamos aqui traçar um “plano de ajustamento” que, a ter sido levado à prática em 8 anos (de 2000 a 2008), nos teria permitido chegar com pleno êxito ao final do referido período (o que se passou depois de 2008 é outro campeonato).

Vamos admitir que a partir de 2000 seríamos governados por políticos honestos e competentes, que contaríamos com o empenho de todos os cidadãos em prol do bem comum e com o investimento necessário e a gestão empenhada dos nossos empresários.

Que condições é que deveriam ter constado desse plano de ajustamento?

Trata-se de um verdadeiro memorando antes da troika, mas sem a troika:

1.ª via a seguir – opção pelo crescimento – esta via, de que hoje tanto se fala, traduz o esforço que seria necessário fazer para que pudéssemos sustentar o nosso nível de despesas, garantindo uma evolução equilibrada da dívida. Se o nosso PIB tivesse crescido 2,24% acima do valor real verificado nesses 8 anos, teríamos chegado a 2008 com a dívida a representar exatamente 60% do PIB. Para se conseguir esse resultado provavelmente deveria ter sido feita a tão falada reconversão do nosso setor produtivo. Por isso estes 2,24% representam a dimensão da nossa incompetência por não termos conseguido definir, cumprir e executar o que devíamos.

2.ª via – através da redução da despesa – se tivéssemos conseguido uma redução estrutural de despesa da ordem dos dois mil e sessenta milhões de euros, essa seria outra via para atingir o mesmo objetivo. Isso deveria resultar da propalada e sempre adiada reforma do estado. Assim, 2.060 milhões é a dimensão do nosso despesismo.

3.ª via – aumento das receitas – outra forma de conseguir o mesmo desiderato seria aumentar as receitas, através do aumento da carga fiscal, por forma a sustentar o nosso nível de despesa. Se os governos tivessem proposto e os portugueses tivessem aceite, ter-se-ia equilibrado o deficit e a dívida com um aumento da carga fiscal que se traduzisse num acréscimo das receitas do estado em 3,15%. Este valor traduz a dimensão da nossa incapacidade de perceber que são os nossos impostos que devem financiar as nossas despesas e a nossa aversão em contribuir para o bem comum.

4.ª – via – solução mista -  em lugar de se atuar apenas sobre uma variável o mais lógico e correto será atuar em simultâneo sobre as três. Uma das muitas soluções poderia ser aumentar o crescimento do PIB em 0,5%, reduzir a despesa em 800 milhões e fazer crescer a receita em 1,25%.

5.ª via – havia ainda uma possível 5.ª via, mas essa já não depende de nós – se as taxas de juros (que no período 2000/2008 se situaram num valor médio de 4,7%) tivessem baixado 2,5%, o objetivo também seria atingido. Repare-se que mesmo assim pagaríamos uma taxa de juro de 2,2%, valor que consideramos utópico, mas que mesmo assim se situa muito acima daquilo que os mercados exigem à Alemanha. Esta é a dimensão da nossa pequenez e da nossa impotência.

Eis então, claramente escarrapachada e quantificada, a dimensão da nossa (i)responsabilidade, da nossa incapacidade em fazer as reformas que é preciso fazer. Aqui se traduz a dimensão do nosso despesismo e da nossa fobia a pagar impostos quando é mesmo necessário.

Comparem-se agora estes números com os que resultam de termos sido atirados para o olho no furacão da crise internacional, de que resultou a entrada da troika em Portugal: o nosso ajustamento não demora 8 anos, mas sim 40; os cortes nas nossas despesas não se ficaram pelos 2 mil milhões, mas por um valor 4 a 5 vezes maior; o aumento das receitas, via impostos, não são os mencionados 3,15% mas aqueles que me abstenho de mencionar, pois todos o sentem e conhecem e apresenta valores diferentes para cada classe social. E, atenção, tudo isto é cumulativo!

Entretanto abriram-se enormes rasgões no nosso tecido produtivo; destruí-se o equilíbrio da nossa segurança social; reduziu-se o nível de apoio prestado pelo Serviço Nacional de Saúde; provocou-se a emigração em massa, principalmente de jovens; elevou-se para patamares inaceitáveis o nível do desemprego.

Identifiquei e quantifiquei com bastante rigor e precisão a dimensão dos nossos erros associados a algumas das causas em cima enunciadas. Digamos que correspondem aos erros e responsabilidades pelos quais o povo português é inequivocamente responsável e teria, sempre, de uma maneira ou de outra, de “expiar”. Mas deixo agora ao critério de cada um identificar, avaliar e quantificar o peso e as responsabilidades imputáveis aos nossos governantes, à troika, à Comunidade Europeia e à crise internacional, sem esquecer aqui a responsabilidade da banca e dos mercados no despoletar e avolumar da crise.



P.S. – contraímos uma dívida de 10 e vamos ter de pagar 100. Há quem ache, com naturalidade, que é o preço a pagar pelas asneiras que cometemos. Esta é a dimensão do nosso sadomasoquismo.


 

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