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Mistura de pensamentos, reflexões, sentimentos; um risco, assumido; uma provocação, em tom de desafio, para que outros desçam ao terreiro; um desabafo, às vezes com revolta à mistura; opiniões, sempre subjectivas, mas normalmente baseadas no estudo, ou na experiência ou na reflexão. Sem temas tabu, sem agressividades inúteis, mas sem contenção, nem receios de ser mal interpretado. Espaço de partilha, que enriquece mais quem dá que quem recebe.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015


HEPATITE C

Não sou seguramente a pessoa mais indicada para falar sobre a hepatite C. Nem sequer para dissertar sobre o “valor” de cada vida humana. Nem quero entrar na análise da revolta, violenta e dramática, de quem sente que entre a sua vida e a morte existe uma barreira que se mede em euros. Nem sequer alinho numa via, que facilmente resvala para a demagogia (de parte a parte), de discutir se o SNS deve pagar ou não tratamentos que podem custar ao erário público milhares de milhões de euros. Mas há algumas facetas do problema que não posso deixar de abordar.

Admitamos que em Portugal existem 13 mil doentes com hepatite C que podem ser curados com a medicação inovadora lançada no mercado há pouco mais de um ano. Admitamos que cada tratamento custa 48.000 euros. Tratar todos estes doentes no SNS custará ao país 624 milhões de euros.

Admitamos agora que os fármacos para cada tratamento custam à indústria 1.000 euros. Nesse caso o lucro das farmacêuticas será 611 milhões, a que corresponde uma taxa de 4.600%. Estes números são, na aparência, obscenos, tanto mais quando se sabe que estão em causa vidas humanas. A questão é que o que é preciso pagar não é apenas o custo dos fármacos, mas os milhões gastos na investigação, que por norma demora anos e anos e envolve equipas numerosas, altamente qualificadas, e que habitualmente fazem centenas ou milhares de experiências frustrantes antes de acertarem na fórmula de sucesso.

Um medicamento que seja um êxito no mercado - nomeadamente quando permite salvar vidas e se aplique a um universo alargado – é um filão que a indústria farmacêutica obviamente não vai largar. Difícil é estabelecer o equilíbrio entre a necessidade de financiar um setor vital para o desenvolvimento da humanidade e um preço justo que não traduza apenas a desproporcionada relação de força entre quem não quer morrer mas não pode pagar o preço da cura. E o mercado costuma ser implacável.

É aqui que se volta a colocar a questão do apoio que o estado deve dar ao desenvolvimento científico, nomeadamente na área da saúde. É muito fácil cortar o financiamento à ciência e, no curto prazo, ninguém nota qualquer diferença nos resultados. E esse é outro grande drama – a difícil mensuração dos resultados e a demora (que pode ser de dezenas de anos) para atingi-los. Mas quando o êxito acontece os resultados podem ser espantosos. Imagine-se o que seria a cura da hepatite C ter sido uma descoberta dos nossos institutos de investigação e os fármacos serem fornecidos pela nossa indústria farmacêutica!

Quando pensamos no quanto custa a educação, a investigação e o desenvolvimento científico, deveríamos pensar primeiro em quanto custa “investir” na inação.



 

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